25.11.06

Eles não querem usar burkha

São cinco – três guitarras, baixo, bateria, três dos caras têm um microfone na frente. Era o último dia de Demo Sul, e ainda tinha bastante sol, o que, somado à poeira vermelha da chácara isolada da civilização, dava um toque de Woodstock ao festival. No palco, A VI Geração da Família Palim do Norte da Turquia (desculpe-me, leitor, mas eu não vou abreviar esse nome, certo?), os cinco caras que, apesar de se referirem a si mesmos como “Família” e jurarem que são irmãos, não tem nada de parecido. Especialmente se você reparar no fato de que o “mini-me” de Charles Bronson e guitarrista inquieto Hassem Palim deveria ter alguma ligação genética com o gigantesco Hassanz Palim, gritando no microfone ao lado.

Se você ouvir A VI Geração da Família Palim do Norte da Turquia em álbum (é mp3, mas é um álbum) você vai achar alguma semelhança com os Titãs dos anos 80, especialmente em canções como “Aos 19 dias do mês de setembro de 1993” (que, apesar do que é dito na letra, não foi um ano bissexto) e “O Papa Tem Artrite”. Porém, ao vivo, a banda concentra faíscas e eletricidade, e transforma seu pós-punk tupiniquim numa versão hard de bandas como The Fall e Gang Of Four – trocando o funk branco por diversão.

Sim, eles estão se divertindo no palco. Mas as letras, acima de tudo, falam de negação, baseiam-se no contrário. Se nos anos 80 ainda existia algum “perigo comunista” e escolher como nome para sua banda a “Camarilha dos Quatro” que deu início à Revolução Chinesa fosse, ao mesmo tempo, uma declaração de princípios e uma provocação deliberada, no mundo pós 11/09 a única rebeldia eficiente e a única tática de choque razoável é se vestir com a perigosa indumentária do Oriente Médio e criar uma mitologia familiar fake de um clã do norte da Turquia.

“Karl Marx Não Mora Mais Aqui” é um exemplo de toda essa inversão sobre o próprio pós-punk. Um riff lento carrega toda a música, junto com a bateria reta e quadrada. Os barulhos começam a crescer, e Hassanz canta “A servidão da maioria alimenta o luxo dourado dos poderosos”, para, em seguida, afirmar uma outra luta de classes: “Aristocratas versus proletariado”. Marshall Berman, em seu estudo sobre a modernidade Tudo o que é Sólido se Desmancha no ar, considera Marx como um dos maiores enaltecedores da classe burguesa, citando trechos do Manifesto do Partido Comunista (escrito com Friedrich Engels) como “A classe burguesa, historicamente, desempenhou num papel revolucionário”. Não que Berman considerasse a classe burguesa a verdadeira classe revolucionária, mas apenas demonstra como Marx respeitava os feitos burgueses até aquele momento. Porém, a América Latina de veias abertas nunca presenciou uma classe burguesa progressista e empreendedora – e o conflito muda, para uma aristocracia feudal contra um proletariado inconsciente. Mas A VI Geração da Família Palim do Norte da Turquia desiste da revolução, tira as armas de Brixton das mãos do Clash e as entrega para os EUA: “O gatilho não vai falhar/ Quando chegar a sua vez”. Três frases crescem, a música se tensiona entre a luta, a negação de Marx e a afirmação que abre a canção – não temos saída, para sempre “a servidão da maioria alimenta o luxo dourado dos poderosos”.

Esse é o tipo de lógica, baseada na oposição e na negação, que perpassa toda a produção da banda. Por um lado, corrobora da piada de internet para fazer uma canção de amor à la “Sandina” (clássico dos Replicantes escrito pela lenda Jimi Joe) em “Acre!? Que porra é essa?!”, ou então questionam o racismo no Brasil através do sistema de cotas em “Fodam-se as Cores”. “Cardoso´s Song” pertence à longa cadeia de canções metalingüísticas da história do punk em celebração à simplicidade (ou, no caso, de negação ao virtuosismo) enquanto “1969” revive a teoria da conspiração, lembrando que “Neil Armstrong nunca soube voar”.

A negação da VI Geração da Família Palim do Norte da Turquia não é a mera birra adolescente dos Ramones – na verdade, estão desconstruindo aos poucos, e com ironia, o mundo que lhes foi dado – negando sistematicamente os supostos progressos da ciência, da sociedade e mesmo do rock, estão provando para si mesmos que não é esse tipo de realidade que esperam. O instrumental é sempre tenso, baseado no diálogo (ou seria discussão?) entre guitarras aos berros, que absorvem tanto elementos do rock’n’roll (“A rua Melvin Jones”) quanto indie rock de arena (“James, o andarilho solitário”) para criar uma parede de execução, onde os condenados são as idéias velhas. E assim, aprendemos que um “NÃO” bem dado vale muito mais que qualquer afirmativa besta, dessas que vêm em torrentes por esses tempos.

25.10.06

Where have all the good times gone?

Demorou, mas chegou – finalmente parece primavera em São Paulo. Vá lá, não uma primavera foda como em Londrina, e sim uma primavera naquelas... Quem leu com alguma regularidade um dos trinta e cinco ponto dezoito blogs que eu já tive, provavelmente conhece minha obsessão com as estações climáticas intermediárias, outono e primavera. Eu li uma entrevista da Lovefoxxx (que, junto com o CSS, parece cada vez mais longe, no bom sentido) para a Sexy onde ela fazia uma lista de 10 dicas sobre como ter um relacionamento legal. Uma delas era a de marcar os bons momentos, as épocas legais, com coisas específicas e que ao mesmo tempo não sejam óbvias. Ao invés de fotografias, perfumes, ao invés de cartas, uma luz específica. “Putz!”, pensei. Essa luz específica é um fenômeno incrível que ocorre sempre nessas estações intermediárias – com certeza associada a um conjunto de substâncias químicas no ar que geram um cheiro diferente. Aliás, o olfato é um dos sentidos que contêm a maior carga de memória afetiva.

Sempre, na primavera e no outono, eu fico nostálgico. Mas é uma nostalgia indescritível, tem mais a ver com um desembaraço das linhas do tempo linear. Com aquela luz específica incidindo sobre as árvores, com o aroma estranho no ar (feromônios?), meu cérebro mistura presente, passado e futuro num estado de superposição incoerente. E por isso eu sou obcecado por essas estações, por causa dessa maldita sensação, melhor que qualquer droga, melhor que qualquer coisa – eu imagino que essa seja a realidade verdadeira, e não aquela que está fazendo barulho na Paulista agora.

Eu costumo associar esse sentimento estranho à nostalgia porque ele também ocorre em algumas situações diferentes do relatado. Músicas que marcaram uma época também me arrancam da realidade consensual e me colocam num mundo que não é nem o ontem, nem o amanhã. Nem lugar, nem tempo. O mais interessante é que existem músicas que se propõem a certa nostalgia, cada uma à sua maneira. Cada artista interpreta suas próprias lembranças de um jeito muito pessoal (não brinca!), mais pessoal que o amor ou o ódio.

Para os Ramones, a nostalgia, o passado, é sagrado. Se possível fosse para esses quatro cabeludos (especialmente para o Joey), nós estaríamos para sempre vivendo na adolescência deles. Pelo menos é o que se ouve em “Rock´n´Roll Radio”. Começando como um dial confuso, onde vozes de locutores AM se trombam, se atraem e repelem, um desses homens do rádio anuncia: “This is Rock’n’Roll Radio, with the Ramones. Come on, let´s go!”. Canção de abertura do disco End of a Century, produzido por Phil Spector (Ronettes Beatles), “Rock´n´Roll...” foi o segundo single tirado do álbum.

As gravações do quinto disco do Ramos foram tensas: Phil Spector nunca foi um produtor fácil de se lidar, um perfeccionista que entrava em constante conflito com os práticos Ramones. Apenas Joey, grande apreciador dos girl groups que Spector produziu durante os anos 50 e 60, conseguiu se dar bem com o produtor. “Rock´n´Roll Radio”, de qualquer forma, é o melhor encontro entre os gênios opostos. Após o locutor, entra a levada de bateria que marca a música. Caixa, prato, chimbau, e uma porrada de órgãos sobrepostos formando um riff quando você menos espera. Entram metais, guitarras e cordas, e aí está mais um perfeito wall of sound, especialidade de Spector.

Mas, mantendo o espírito Ramones, Joey canta mais um grito de guerra (são tantos nessa religião) com a voz rasgada: “Rock´n, rock´n´roll radio, let´s go!”. A música cresce, e quando parece que vai descambar para a barulheira, tudo muda para uma escala assobiável, que lembra as linhas de baixo do começo da história do rock. Por cima da cama de instrumentos, Joey vai recrutando todo as suas memórias musicais infantis, começando pelos programar de rádio e TV: Hullaballoo, Ed Sullivan, Upbeat, Murry the K, Alan Freed. O fim dos anos 70, o fim do século, e, acima de tudo, o fim do rock. Com as versões pasteurizadas da disco e do punk tomando as paradas, realmente parecia o fim do mundo para um garoto que acreditava tanto em sua própria infância.

Depois de lembrar-se de ouvir o rádio com a cabeça debaixo das cobertas, Joey conclama: “Nós precisamos de mudança/ E precisa ser logo/ Antes que o rock vire parte do passado/ Porque ultimamente tudo parece a mesma coisa para mim”. A letra vai até alguns heróis do excesso (um por geração – Jerry Lee Lewis, John Lennon e o T. Rex de Marc Bolan), e volta à nostalgia. Com muita fé na própria infância, joey não é só o garoto que não que crescer, mas que também não quer que nada a sua volta mude. Muito tarde, rapaz, as coisas mudaram bastante, e muitas delas por culpa sua. É a vida.

A mesma cultura gay norte-americana que nos deu a disco nos anos 70 também é, em boa parte, responsável pela revolução eletrônica ocorrida no final dos anos 80 na Inglaterra (a outra parte da culpa fica com o ecstasy). Descendentes do synth pop do começo daquela década, a dupla inglesa Pet Shop Boys aos poucos se misturou a onda clubber que dominou a Grã-Bretanha nos anos de 88/89.

Um dos efeitos mais interessantes do ecstasy, segundo Matthew Collin, autor de Altered State – The Story of Ecstasy and Acid House, são os quatro estágios do uso regular da droga. Primeiro, a euforia, a sensação única. Depois, o abuso, quando o usuário tenta atingir aquele mesmo patamar inexplicável da primeira vez em que ele experimenta o MDMA. Depois a decepção, ao perceber que aquilo tudo nunca vai voltar, e então a re-entrada no mundo pós-ecstasy, onde o ex-usuário procura o equilíbrio (eu sei, isso não é bem assim, mas não é isso que está em discussão aqui). “Being Boring”, faixa de abertura do álbum Behaviour (1990), dos Pet Shop Boys, tem muito a ver com esse último estágio.

Beats leves, aqueles bem típicos do pop do começo dos anos 90, a melodia lenta que guia a música tocada no sintetizador analógico (Behaviour foi um álbum atípico, onde os Pet Shop Boys resolveram trabalhar apenas com instrumentos não-digitais), alguns efeitos com um pouco de brilho abrem a canção. Com sussurros, o vocalista Niel Tennant faz suas próprias descobertas: “Eu achei uma caixa de velhas fotos/ E convites para festas de adolescentes/ Um deles dizia, ‘vista-se de branco’, e tinha uma citação/ Da esposa de alguém, um escritor famoso/ Dos anos 1920”. A esposa em questão é Zelda Fitzgerald, esposa de Scott Fitzgerald e também escritora, foi uma das mulheres mais importantes dos anos 20, para muitos, o arquétipo da “melindrosa”. A citação a qual Tennant se refere provavelmente é um trecho do ensaio “Elogio à Melindrosa”, escrito por Zelda e publicado em junho de 1922 na Metropolitan Magazine. Ali, ela dizia que a melindrosa “se recusava a ser entediante acima de tudo porque ela não era entediente” (“She refused to be bored chiefly because she wasn't boring”, você pode achar um trecho maior aqui). Tennant prossegue: “Quando você é jovem, você acha inspiração/ Em qualquer um que já se foi/ E, abrindo uma porta fechada/ Ela disse: ‘Nós nunca nos sentíamos entediados”.

Uma das principais teorias a respeito de “Being Boring” é de que a música retrata o hedonismo da época pré-Aids. No final, não estamos falando sobre Aids, sobre o fim do verão do amor, estamos falando sobre crescer, ter responsabilidades, e ainda assim, saber que não somos entediantes, nem entediados. “Agora eu sento com diferentes caras/ Em quartos alugados e lugares no estrangeiro/ Todas aquelas pessoas que eu beijava/ Algumas estão aqui, e outras estão perdidas/ Nos anos 1990”. Ir embora para sempre é uma opção, para a morte e para a vida. A nostalgia de “Being Boring” é construtiva e ao mesmo tempo deprimente – enquanto nos lamentamos porque nunca mais seremos os mesmos, aprendemos que nada temos a nos arrepender sobre o tempo em que fomos aquelas pessoas, pelo contrário, nosso passado é motivo de orgulho. “Porque nós nunca nos entediamos/ (...) E nunca nos preocupávamos se o tempo chegaria ao fim”.

As duas músicas acima foram escritas/lançadas na virada das décadas, quando, as vezes, lamentamos tempo que se foi e enchemos de esperança os anos vindouros. Agora a virada não é apenas de década, falamos de século, milênio. Os Strokes foram a primeira banda de rock a ter alguma exposição midiática nos anos 2000. “Someday” fecha a primeira metade do álbum de estréia dos guris de Nova York, Is This It (2001). Duas batidinhas na caixa e uma guitarra com distorção valvulada, dois acordes, deixa morrer, dois acordes, tudo rápido. Sem crescer, mas também sem assustar, outra guitarra e o baixo. O vocal de Julian Casablancas entra um pouco enterrado entre os pratos surrados sem dó. Com aquele jeito arrastado, alternando o cool e o visceral, canta “De muitas maneiras, sentiremos saudades dos bons velhos tempos/ Algum dia/ Algum dia”. Não há tempo a perder. Porém, a nostalgia de “Someday” se faz no agora, e se previne de um futuro de lamentações. Ao invés de olhar pra trás e lamentar, ou desejar aquilo para o presente, os Strokes sabem que a nostalgia se faz do agora, e não deixam nada para trás.

“Quando éramos jovens, cara, a gente se divertia/ Sempre/ Sempre”, ironiza Julian, recém entrado na casa dos vinte. Invertendo o sentimento, promete: “Algum dia/ Eu não estarei mais perdendo tempo”. Param as guitarras, baixo e bateria, e Casablancas sussurra “Tente de novo/ Tente de novo”, para tudo voltar como antes, e fechar bruscamente. Sem medo de criar um passado, os Strokes seguem em frente, sabendo o que já foi feito e apontando na direção de um eterno presente. Se isso acontece porque eles são novos demais (todos somos), só nos resta experimentar. E chega de saudade.

11.7.06

Wouldn't you miss me at all?

Pois é, o Syd Barret morreu. E agora é SÉRIO.

Descansa, guri, descansa...

10.7.06

Fashion victm

Aí, gurizada, tem uma matéria minha abrindo o podcast do Trama Virtual essa semana.
Baixaí!

5.7.06

Os Garotos São Espertos

A gente sabe muito bem que esse negócio de mod não é novo não. Começou em 63 e tal. Mesmo no Brasil, o Ira!, lá pelos anos 80, pegava carona no revival promovido pelo The Jam e tentava atualizar o "movimento" para o país - focando mais numa urbanidade nascente, de paulistano orgulhoso, que numa recordação dum passado incipíente. Tudo bem, eram os anos 80, e naqueles tempos, o culto pelos 60s era bem comum. Agora, como explicar o surgimento de um Relespública em plenos anos 90?

Na geração independente que despontou naquela década, via-se de tudo. Do Recife, o manguebeat e as bandas irmãs Nação Zumbi e Mundo Livre S/A traziam uma modernidade à brasileira, misturando hip-hop e maracatu de um lado e Jorge Ben e punk rock de outro, criando uma cena mítica, um arquétipo para aqueles que viviam "longe demais das capitais" (nada como usar uma citação lugar-comum de Engenheiros do Hawai, né?). Belo Horizonte era um celeiro que dava tanto o metal internacional do Sepultura quanto o dancehall ultra-jamaicano (e nada roots) do Skank - enquanto o Pato Fu transformava a ironia e o experimentalismo dos Mutantes em um credo. O interior de São Paulo enchia o mundo com microfonias, no Rio um tal de raprockandrollpsicodeliahardcoreragga era o quente. O Rio Grande do Sul atacava com o sempre "adiantado demais para a sua época" De Falla, enquanto Brasília exportava o forrócore dos Raimundos.

Essa geração pré-internet, unida tanto pelos festivais (como o campineiro Juntatribo) quanto pela MTV (principal fonte de conteúdo pop atualizado, naqueles tempos), usava qualquer gênero mais "tradicional" para compor sua "mistureba", mas nunca perdia de vista seu senso de modernidade, atualidade. Por mais que a jovem-guarda fosse uma referência para a Graforréia Xilarmônica, era apenas uma base kistch para a experimentação desenfreada e as piadas intraduzíveis dos gaudérios, assim como o Kiss era uma invisível influência para o Killing Chainsaw.

Para a Reles, isso não fazia nenhuma diferença. Eles nunca quiseram ser modernos - não que todos esses outros aí em cima quisessem ser - mas era uma questão mais simples: de um jeito ou de outro, todos os seus ídolos estavam mortos. Com uma única referência brasileira (o já citado Ira!), e sempre laureando o duo que é a pedra-de-toque de tudo que se faz em nome do rótulo mod no mundo (Who e Jam), o hoje trio curitibano lançou em 93 o compacto MOD pela Bloody Records. Ali, a Reles se destacou de uma cena esquizofrênica (duvida? Faz a lista: Woyszeck, Boi Mamão, Bonde Do Rolê, OAEOZ, Malditos Ácaros do Microcosmo, Resist Control, Catalépticos e Bad Folks. Contaí, agora, o que uma banda tem a ver com a outra?) e, por si própria, criou a cara de um "som de Curitiba", não "O" som, mas uma personalidade que acabou relacionada à capital do estado que vai de Paranaguá até Ponta Grossa.

Por outro lado, a Reles passou de certa forma alienada do eixo que reuniu o "churly" paulistano à psicodelia jovem-guarda gaúcha, materializado no Momento 68, banda das figuras-chave (menos visíveis, mas tão importantes quanto os Skywalkers ou Júpiter Maçã) de ambas as cenas, Sandro Garcia e Plato Dvorak. Recuperados da morte do vocalista Daniel Fagundes (que morreu num acidente de carro aos 16 anos), a Reles "inchou" (com a adição de Kako Louis nos vocais e Roger Gor nos teclados) e lançou o álbum "E o Rock´n´Roll, Brasil?" em 1999. E ali, a Reles demonstrou sua vocação para a historiografia do rock: ao lado de hoje clássicos como "Sol Em Estocolmo", figurava uma versão de "Neurastênico", fox-trote de Betinho & Seu Conjunto que entrou a toque de caixa na história do nascente rock brasileiro safra 50. Ou seja, driblando o "clichê" jovem-guarda, a Reles coloca a história do rock no Brasil a seu favor. Naquele mesmo disco, o rock´n´roll básico (sem nehuma afetação mod) da faixa-titulo convivia com o ska "Mammaoola". Sem novidades ou invenções a Reles descobriu sozinha que seu lugar no panteão pop tupiniquim é o de saudável guardião das tradições.

Depois de um contrato falido com a gravadora Universal (que rendeu o álbum O Circo Está Armado), a banda voltou ao formato original, aquele de 1990, o trio baixo (Ricardo Bastos), guitarra/voz (Fábio Elias) e bateria (Emmanuel "Moon" - adivinha de onde vem o apelido...). Em 2003 saíram com o álbum As Histórias São Iguais, praticamente um hinário mod. Com hits underground como "Garoa e Solidão" e a participação do ídolo Nasi em duas canções - uma delas composta pelo adolescente Edgar Scandurra e nunca antes gravada pelo Ira!, "A Fumaça É Melhor Que o Ar" - a Reles ressurgiu num cenário que passava a entrar em ebulição. A cena mod brasileira começava a dar sinal de articulação, unindo via rede Porto Alegre, Curitiba e São Paulo, juntando bandas que iam do pop jovem guarda dos Dissonantes ao mod 79 do Laboratório SP, passando pelos majors Cachoro Grande e os insanos Faichecleres. Logo centros periféricos do Sul, como Londrina E joinville tinham suas versões mod (aqui, o Cherry Bomb era anexado ao rótulo pelo seu punk 60s, enquanto o catarinense Reino Fungi tocava com Renato e Seus Blue Caps). No posto mais alto desse panteão fica a Reles, que tinha muito mais crédito de estrada e moral no underground que metade das novas bandas reunidas (algumas nem tão novas, tá). Com o disco distrubuído pela Tratore e muito bem divulgado - "Somos a banda que, ao invés vender mais CDs, somos a que mais dá CDs", falava Fábio Elias no Demo Sul de 2004 - coisa que, aliás, pude confirmar: encontrei Ivan, o produtor da banda, na saída do hotel Caçula naquele ano; ele só me perguntou "Você tem o disco da Relespública?". Diante da minha negativa, recebi um exemplar fresquinho do As Histórias São Iguais. Divulgação mais preza, impossível.

Corta para 2006, 24 de junho, Cascavel, Bielle Clube. A internet mudou os parâmetros, e eu estava indo ver um show com o meu irmão e os amigos dele, coisa impensável até dois anos atrás. Não pelo guri, mas pela "cena" de Cascavel, inexistente durante meus 16 anos por lá. O motivo para estar na casa noturna que eu desprezei durante toda a minha vida era mais que nobre: a Relespública, em sua turnê "MTV Apresenta". Quem sabe a Reles finalmente possa mostrar-se para o grande público do melhor modo possível: ao vivo, com a mesma impressionante energia presente em todos e quaisquer show deles. Aquele mesmo nó na garganta, aquele mesmo apelo ao movimento, a mesma majestade, graça, garra. Quem sabe a Reles poderia mudar a minha própria história.

Em Cascavel, em paralelo e acima da minha história pessoal com a cidade, a perspectiva histórica da Reles, e o papel deles na nebulosa fronteira entre o independente e o mercado oficial é o de transcender tudo em nome de uma religião com nome estrangeiro: o rock. O que mostra a Reles é que eles sabem muito bem qual é a liturgia e o credo dessa seita. As covers vão de Who e Beatles a Jorge Ben (via Mutantes) e Raul Seixas, com "Cowboy Fora-Da-Lei". E a Relespública deixa de ser mod porque deixa de pertencer a qualquer rótulo, a qualquer época. Para eles, o rock não é uma história linear que se explca numa progressão de fatos, num contínuo evolutivo. O rock é um organismo que contém em si todas as formas possíveis dentro de seu campo estético - e também a Reles. Entre a nova "Mudando os Sentidos" (faixa-titulo do próximo álbum) e "Capaz de Tudo", a principal canção daquele compacto de 93, a Reles é a mesma, mas também é diferente. Os meninos daquele vídeo caseiro que aparece no clipe de "Garoa e Solidão" cresceram, agora são a melhor cozinha do rock brasileiro e um dos melhores e mais carismáticos compositores da sua geração - mas também não perderam o vigor adolescente. Não importa se tiveram a sorte e o azar de começarem naqueles caóticos e maltratados anos 90 - a Reles não faz parte da história: a Relespública é a História, até porque, como eles mesmos ensinam, "As histórias são iguais".

4.7.06

Listen To The Girl/ As She Takes On Half The World

Ainda republicando o velho blog, só para manter esse aqui em dia (e para arquivar toda a minha "vasta" produção num endereço só). Agora, fugindo um pouco da música, um futuro clássico cult: Encontros e Desencontros.

Charlotte Sometimes

"I’m stuck. Does it get easier?"

Todas as pessoas com uma mínima chance de importar alguma coisa já se sentiram como a personagem de Scarlett Johansson em Encontros e Desencontros. Aquele mesmo amargor na garganta provocado por uma sensação mais profunda e confusa que apenas de um estranho em terra estranha (como diriam os Bunnymen, "People are strange, when you’re a strange"[eu sei que é do Doors, mas a versão do Bunnymen é melhor]). Ali, na tela, vemos o pico dessa experiência, catalizada por todas as coisas que só Tóquio oferece para os Ocidentais: jet lag, nada de alfabeto romano, conforto cultural mínimo (aliás, creio que Mafesoli já falou sobre "não-lugares", zonas de espaço-tempo que apresentam uma geografia física e cultural padronizada, como os shopping centers e os aeroportos [inclusive tem uma história sobre isso no "Clube da Luta"]). Mais uma das fábulas modernas, essa complexa mitologia da cultura pop, o filme da filha do hôme não trata de solidão ou do encontro das semelhanças entre os diferentes.

O deslocamento não reside nos problemas de tradução, no custo da ligação telefônica internacional, em não se encaixar no papel que a sociedade espera de você. O problema não é fumar: é perceber que o seu maior plano em longo prazo é largar o vício. Mais que a inutilidade do comercial de uísque, é a naturalidade em aceitá-lo. Não é o mal de uma geração que enfrentou o fim-do-século com hedonismo policiado. Não é a Cameron Diaz. Não é o CD de auto-ajuda.

Charlotte é um microcosmo de auto-descoberta nessa briga entre o cada vez mais importante mapa-realidade individual e mutável contra um status quo que pouco tem a ver com regras de etiqueta. Acima da cidade, olhando o nada e escutando apenas aquele som agudo fabricado pelo nosso próprio cérebro. O Japão é só um dos melhores veículos para perceber como conseguimos nos perder em nós mesmos: sem todas as facilidades de entretenimento e sociabilidade, afastada da automação do cotidiano e funcionando com o horário trocado em relação ao resto dos seres humanos, Charlotte sente o vórtice intensificado. Não exatamente um "o que você quer fazer da vida?", mas um "o que você pode fazer da sua vida", com uma insistente sensação de que se pode tudo, mas não se deve, ou quer, nada.

No auge dos seus 19 anos, Scarlett era (e ainda parece ser) a Charlotte universal. Bonita, mas com sutilezas (ou será verossimilhanças?) proibidas em Hollywood, como a barriguinha de cerveja. Sorriso suave, voz profunda e macia, uma aura de naturalidade rara nesse mar de tubarões da publicidade (que é pra isso que se presta, cada vez mais, Róliuúde). Mais segura que a Winnona Ryder e menos agressiva que a Angelina Jolie, Scarlett emana familiaridade. Assim conta aos outros sobre si mesmos. Exatamente aqueles que não entendem nada de rumo, mesmo que com as mãos repousando no timão, aqueles que repassam infinitamente na cabeça planos infinitamente fadados ao fracasso, aqueles solitários de multidão, aqueles que tem fé em tudo menos em si mesmos. Mesmo o mais alto arauto da iluminação teve a sorte de passar por esse estágio (tudo são estágios de uma permanência total). No fim, entre o som e o silêncio, a trilha sonora (explicando todo o resto) pende confusa entre o cinismo e a esperança. Porque mesmo as lamentações quixotescas de Nick Lowe em "What’s So Funny About Peace Love & Understanding" acabam soterradas pela introdução de bateria chupada das Ronettes, a parede de guitarras e a voz cheia de eco dizendo: "Eating up the scum is the hardest thing for me to do."

28.6.06

I bet you´re wondering how I knew...

De repente, sozinha, uma caixa, um toque seco. Então o piano elétrico Wurlitzer começa a tocar aquele riff conhecido. Uma meia-lua começa a tremer, como se fosse o som de uma cascavel pronta para dar o bote. A bateria vem marcial, a guitarra começa a aconpanhar o piano e entram as cordas subindo, juntamente com a familiar voz, uivando um lamúrio.

"I Heard It Trough The Grapevine" é uma composição de Norman Whitfield, com letra de Barrett Strong. Letrista da Motown, Strong também escreveu, em parceira com Whitfield, outros clássicos, como "War", de Edwin Starr e "Papa Was A Rollin´Stone", dos Temptations, além de ser o cantor do primeiro grande hit da gravadora, "Money" (é, aquela dos Beatles). Whitfield também era produtor, especialmente dos Temptations - banda que mais tarde seria conduzida por ele para o soul psicodélico.

Whitfield, consciente da qualidade da música em questão ("I Heard It...") , gravou-a inicialmente com dois grupos: Smokey Robinson And The Miracles e The Isley Brothers, ambas rejeitadas pelo "controle de qualidade" que a Motown mantinha. A canção só foi fazer sucesso com Gladys Knght & The Pips - que virou o single mais vendido da gravadora. Porém, antes dessa versão, Whitfield havia gravado a cançaõ da forma que ela entraria para a história, com Marvin Gaye, ainda em 67. A versão de Gaye, infelizmente, foi rejeitada por Barry Gordy, chefão da gravadora. Um ano depois, quando estava-se decidindo as faixas que entrariam no álbum "In The Groove", Whitfield deu um jeito de encaixar "Grapevine" na lista final. Apesar do compacto oficial do disco ser "You", logo os DJs de todas as rádios estavam tocando "Grapevine". Quando lançada finalmente em single, a canção ultrapassou as vendas totais da versão de Gladys Knight, tornando-se o compacto mais vendido da gravadora (até que "I´ll Be There", dos Jackson 5 a desbancasse do posto).

Ouvindo hoje, dá pra saber porque Gordy vetou a versão de Marvin Gaye. "Grapevine" foi um marco na história da gravadora, representando o momento onde as canções açucaradas, tanto na forma quanto no conteúdo, dão lugar a composições mais sérias. Na própria carreira de Gaye, representa uma virada: depois do colapso que sua parceira na Motown, Tammi Terrel, sofreu em cima do palco, Gaye acabou enveredando por caminhos mais "adultos", que resultariam no álbum "Wht´s Going On", lançado em 71.

A letra de "Grapevine" trata de fofocas e um relacionamento que parece chegar ao fim. Gaye foi instruído por Whitfield a manter seu vocal um pouco acima do seu registro natural durante toda a canção - assim criando na voz o efeito cru e desesperado que mais tarde se tornaria marca registrada do cantor. "Aposto que você imagina como eu soube/ Dos seus planos de me fazer triste/ Com um outro cara que você já conhecia/ Entre eu e ele, você sabe que eu te amo mais", Gaye transita entre a acusação e a defesa, mas logo exclama: "Me pegou de surpresa, eu tenho que admitir/ Quando eu descobri ontem/ Você não sabe o que eu ouvi ontem, entre as parreiras/ Que você deixaria de ser minha/ É, eu ouvi lá entre as parreiras/ E eu estou quase perdendo a cabeça". Enquanto Gaye quase perde a voz em desespero, os backing vocals dos The Andantes sussuram o refrão, como num cochicho, numa fofoca.

"Sei que um homem não deve chorar/ Mas essas lágrimas eu nao consigo guardar/ Te perder acabaria com a minha vida/ Porque você significa muito para mim" - mantém a aura romântica típica da gravadora - ataca: "As pessoas dizem: acredite apenas em metade do que você vê/ E em quase nada do que ouve/ Mas estou um tanto confuso/ Então me conte, querida/ Você planeja me deixar/ E ir com o cara que você conheceu antes?". E tudo termina em dúvida, tanto para o cantor quanto para o ouvinte: não sabemos a resposta, nunca saberemos. Estamos frente ao Dom Casmurro da música pop.

Além de, claro, constituir um quase-hino contra a fofoca, "Grapevine" se assenta em outras questões. Duas metáforas bíblicas podem ser contrapostas: enquanto a videira é utilizada como metáfora por Cristo durante a Ùltima Ceia (em João 15, por exemplo), as prórpias folhas da parreira foram usadas por Adão e Eva para cobrirem as suas vergonhas - aquelas que se tornam "vergonha" após a Queda, perpetrada pela Serpente - aquela mesmo que abre a canção, no som da meia-lua. Aqui "Grapevine" faz uma reverência oa gospel do qual o soul nasceu, e ao qual este sempre voltará, saja com os Staple Singers, seja com os Racionais MCs.

"Grapevine" também tornou-se símbolo do timbre do piano Wurlitzer, que opera o irff principal da canção. Ao manter os arroubos sinfônicos da Motown, Whitfield trabalhou para dinamizar os arranjos, revestindo as cordas de groove e fazendo-as trabalhar em conjunto com a cozinha - dessa forma, antecipando o caminho tomado não apenas por Marvin Gaye, mas também por outros cânones da música negra americana, como Curtis Mayfield e Isaac Hayes. Tal conceito, que alia groove e instrumentos sinfônicos, será responsável tanto pelas históricas trilhas dos filmes blaxpliotation, quanto por uma série de formatos que mais tarde desembocarão num padrão para a disco music do final dos anos 70.

O groove que permeia "Grapevine" vai fundo nas suas raízes negras. Diferente do requebrado balanço soul da Stax, e longe da dancinha comportada e limpinha da Motown, Whitfield buscou criar uma estrutura que induzisse mais ao transe que ao rebolado. O padrão hipnótico do riff, repetido em diferentes alturas e timbres - piano, guitarra e baixo, é coroado pela percussão africana, no sentido mais radical do termo: foge da amálgama do "afro-americano", desce ao subconsciente réptil da pulsação cardíaca, e volta como vudu, macumba, o próprio coração das trevas. Antes que Sly Stone e George Clinton transformassem a música negra num parque-de-diversões psicodélico (juntamente com o próprio Whitfield, que produzindo os Temptations criou odes à doideira como "Cloud Nine"), Whitfield colocou Marvin Gaye na árvore genealógica que vai de Fela Kuti a Afrikaa Bambattaa (e do ponto de umbanda ao funk carioca) - onde ritmo e transe negros servem ao objetivo máximo: a dança.

27.6.06

Reedições II - Rock Ritual

O Ronaldo elogiou, o Gazzoni falou de coisas correlatas, saiu uma matéria na Folha corroborando, e eu tava a fim de reeditar. Bem pretensioso, espero que não soe muito besta um ano depois...

Live Dead

A maneira talvez mais primitiva que a música se manifesta na história humana é na condição ritual, como suporte para a celebração social de uma espiritualidade compartilhada por um determinado grupo social. Antes dos adjetivos estéticos, racionalizações de uma visão antes mística, a música devia-se ao transe, ao convívio social além do cotidiano. Aliás, a música passa a ser especialmente cotidiana a partir do momento em que a gravação e o rádio entram em cena. Essa condição primal de ritual social, culto, manteve-se até os dias de hoje, sem perspectiva de sumir. Os rituais obviamente mudam em cada sociedade, com isso também muda a música. A música tradicional japonesa baseia-se num código rígido de ritual, do que pode ou deve ser tocado ou não, onde e quando, enquanto a música africana baseia-se num ritmo mais livre, voltado aos movimentos corporais. Refletindo e também moldando o temperamento social, a música segue em contato com o espírito, mesmo nos nossos tempos laicos.

Depois da morte de Deus, as mitologias que guiam e explicam como o indivíduo deve portar-se diante da sociedade foram obrigadas a mudar de escopo. Sem a religião como norte, desenvolveram-se outras formas de se interpretar e conferir sentido à vida. Enquanto a música erudita transcendeu o estado modal em direção as experimentações do minimalismo (para explicações, melhor ler “O Som e o Sentido” do Zé Miguel Wisnik), a música popular seguiu em mutação em direção ao pop propriamente dito. O rock é um exemplo bem acabado de mitologia moderna. Ali existem mitos fundadores (Elvis, Chuck Berry), mitos transformadores (Beatles, Sex Pistols), mitos com a função de manter um status quo dentro do conjunto do estilo (desde “American Pie” até aqueles artistas que lançam sempre o mesmo disco, como o AC/DC). Como a maior parte das religiões, o rock também tem a sua forma de culto, que desde o começo do estilo está presente: o show.

Se no começo os shows de rock diferenciavam-se de qualquer outro show apenas pela crueza africana (herdada diretamente do R&B), com o tempo e as bifurcações tomadas pelos xamãs, sacerdotes ou simplesmente músicos, começaram a aparecer códigos específicos de conduta dentro dos rituais de cada tribo que aparecia. Existem artistas cujos shows têm códigos especialmente próprios, como o Grateful Dead: horas em cima do palco, a liberação da pirataria, o público com comportamento específico, buscando o transe e a comunhão, as drogas certas, sempre tocando uma versão longuíssima de “Dark Star” – uma celebração especial por si mesma, atentando para o fato que até pouco tempo não existia uma versão oficial de estúdio para essa música. Da mesma forma o Kiss se inventou enquanto banda de performance, com um código de vestimenta imitado pelos fãs, atuações ensaiadas e sempre repetidas, como o Gene Simons vomitando sangue, cenografia impecável. Um devoto que vai a um show dessas duas bandas sabe exatamente o que acontecerá, assim como os católicos praticantes sabem a hora em deve-se levantar ou sentar durante uma missa.

Um componente normalmente presente em muitos rituais são os psicotrópicos, maneiras de atingir realidades diferentes que sempre estiveram associadas aos planos espirituais. No rock, saem o peiote, o ópio e o vinho e entram a cerveja, a maconha, a cocaína, o LSD e todo um panteão de químicas artificiais. Porém novamente os códigos sociais, além do mood causado por cada substância, vão estabelecer momentos específicos para cada droga. Maconha no reggae, LSD para os hippies, aguardente com refrigerante para os punks, cocaína e ketamina para os fãs de Placebo, cerveja para todos. Não que essas fronteiras sejam muito rígidas, mas pelo menos delimitam um campo de maioria para o uso de uma ou outra substância.

Todo show é um ritual, e as subculturas do rock vão criando maneiras específicas de se comportar dentro de cada uma dessas missas. Os indies são apáticos, os punks abrem uma roda de pogo, os headbangers batem a cabeça com o braço erguido em lml. A quebra desse padrão gera estranheza, pular num show do Hurtmold pode soar tão anormal quanto querer erguer as pernas como se fosse um reggae numa apresentação do Napalm Death ou girar os quadris ao som do Garage Fuzz. Tais normas de movimentação corporal são regidas ao mesmo tempo pelo pulso da música apresentada e pelos códigos de estilo de cada subcultura, assim como todas as outras relações que os membros de cada subcultura têm com o corpo (indumentária, cabelo, modificações corporais).

O espaço também vai mudar a maneira como o ritual se dá. O já citado Kiss funciona melhor num grande estádio, enquanto o Grenade faz mais sentido “tocando no chão, para 200 pessoas, com a fumaça do cigarro dos outros batendo na cara”. Casas muito grandes para um público limitado e uma banda menos conhecida minam a comunicação, assim como um teatro,.mesmo pequeno, não serve para um show punk. A relação de proxêmica muda os humores: um público espalhado soa melhor para o mini-Woodstock que é o show de um Grateful Dead, assim como um palco baixo de um clube pequeno vai ser mais eficaz para um Cherry Bomb. Os outros elementos que determinam um bom show seguem da mesma maneira: o horário em que começa ou acaba, volume e qualidade da aparelhagem de som, excesso ou falta de iluminação.

Porém o ritual quase sempre se completa – exceto quando interrompido pela polícia ou outro acontecimento esotérico do mesmo naipe. Afinal é um dos componentes mais fortes dessa religião roqueira, em cima do qual inúmeras narrativas são erguidas. Os discos são a liturgia, cantar uma música sozinho como um retardado é a oração, porém nada vai estar mais perto da transcendentalidade que um show. Nos tempos da telepresença, do individualismo da música eletrônica, da entrega a domicílio, a comunhão pública e compartilhada começa a encher-se de significação e necessidade. O rito do show de rock dá ao sujeito uma noção de participação e pertencimento a algo maior que a soma das partes. As vozes em uníssono, o transe coletivo da dança, isso tudo dá ao rock um sentido final, agora que a revolução (estética ou social) não está mais na sua mão.

6.6.06

É tudo free - as verdadeiras lojinhas vituais

Depois que o Matias escreveu sobre os blogs de mp3, fiquei com preguiça de colocar esse texto aqui no ar. Mas como eu descobri que outro texto meu (sobre o Betty By Alone) foi ao ar no excelente Lágrima Psicodélica, resolvi publicar de vez essa porcaria...

E então se fez o MP3. Tá, convenhamos, o MP3 não é um formato de áudio, e sim um padrão de compressão, cria do alemão Karlheinz Brandenburg e sua equipe, baseados em outros formatos de compressão (o MP1 e MP2) . A história mais completa do MP3 você encontra aqui. Se dependesse da indústria fonográfica, esse tipo de arquivo ainda estaria circulando apenas nos porões nerds das BBS´s afora.

Apesar de soar estranho hoje, o MP3 era, inicilmente, muito grande. Apesar dos 128 Kbps parecerem pouca coisa, vale lembrar que há uns dez anos, um HD de 1 Gb não era muito comum. Além disso, a internet, seara onde o MP3 popularizou-se, também era lenta, com suas conexões discadas e outros quetais.

Em 1999 a Rede já começava seu processo de estabilização, popularização e aceleração, enquanto o tamanho dos HDs (assim como a RAM) inchava. Foi nesse ano que surgiu o Napster, primeiro programa P2P, onde os usuários trocavam seus arquivos. Mesmo naquela época as coisas eram mais lentas: músicas que demoravam horas para serem baixadas, ripar um CD para o computador exegia a mesma paciência, e ninguém possuía muita coisa nas pastas de arquivos (ainda todas desorganizadas)

O Napster acabou, mas enquanto a largura de banda crescia, substitutos iam aparecendo. O primeiro fenômeno do combo P2P + MP3 foi a revitalização do single: afinal, quem estava afim de pagar por um álbum inteiro quando queria apenas uma canção? A pasta de arquivos em MP3 de cada pessoa era um grande shuffle, uma sequência embaralhada de músicas diversas.
Depois, foi a vez do álbum entrar para a era on-line. E dá-lhe pastas e mais sub-pastas divididas em artistas e álbuns, dá-lhe digitar um nome que você quisesse, em qualquer programa, e achar 300 mil arquivos e usuários diferentes com aquele disco, aritsta ou música. A internet é o sonho do aficcionado por música, onde toda a música gravada na história parece estar ao alcance de todos.

Mas, meio que do nada, eu senti um pouquinho de vazio: e o que acontece com aqueles pequenos rituais que a música pop criou na gente. Um que eu realmente sentia mais falta era o da loja de discos: chegar como quem não quer nada, cumprimentar o vendedor (que, invariavelmente, era seu amigo) e sair fulando nas prateleiras. Parece que a precisão cirúrgica do botão "search" eliminou a surpresa, aquela sensação de se deparar com um disco que você sempre quis ouvir mas nunca lembrava de pedir pro vendedor (ou de digitar no campo de pesquisa). Se você é monotemático, tudo bem, sempre vai encontrar o que quer: um bootleg do Dylan, um ao vivo do Venon, uma coletânea de lados B do Daft Punk; ms se você é um fã incondicional de uns 30 estilos diferentes, sempre vai ficar um pouco perdido.

Foi aí que eu descobri os blogs de MP3. Não falo apenas de blogs que colocam uma canção ou outra de seu artista favorito, mas que postam álbuns inteiros via rapidshare. A sensação é muito parecida com entrar numa loja "só pra olhar". Sem pretensão nenhuma, você dá uma olhadinha no que tem por ali. Logo chega o vendedor, explicando a importância de cada álbum postado, o quanto ele é raro, quem ele influenciou. O que antes era apenas uma lista de faixas ganha vida, e o joio é separado do trigo. Claro que esses blogs não são mega-stores, onde você vai achar tudo o que quer. Tem mais a ver com sebos virtuais, cada um especializado na sua seara. Para quem gosta de velharia roqueira, vale uma chegada no Past Tense Music, por exemplo . Em português e inglês, lá dá pra achar de Who a Mutantes, de Cream a Sá Rodrix e Guarabira, tudo contextualizado e bem contadinho. Experimentalismos? Curved-Air. Musica jamaicana dasantiga? Hearwax Trilhas sonoras classudas? Lounge Tracks. Jazz raro? Jazz Heads. Até mesmo as lendárias Peel Sessions do falecido DJ inglês John Peel têm seu cantinho: The Perfumed Garden

A variedade é tão grande que já existem blogs que apenas compilam outros blogs, como o excelente Nau Pyrata. Sem a poeira causadora de rinite dos sebos, a plataforma virtual fica entre uma economia do excesso e um p2p generoso. Pois é, a internet já apresentou sua versão do single, do álbum e agora, da loja de discos, sempre em adaptações espontâneas de formatos industriais. O futuro - nos próximos vinte meses - só podemos imaginar, enquanto aproveitamos cada possibilidade da revoluçaõ tecnológica.

5.6.06

De volta para o futuro I: Blood On The Tracks

Ultimamente eu estou meio sem tempo, mas com muitas idéias. Então eu vou postar um texto "antigo" meu, (vá lá, tem só três anos) que estava perdido no limbo. Acho que vai dar pra enxergar a imaturidade daquele Amauri com tranquilidade - que ainda não é maduro, mas está menos pior que na época.



The Blood On The Tracks Only Must Be Mine

Eu sei que isso aqui não é a Discoteca Básica pra ficar falando de disco velho, mas a questão é mais abrangente. Nunca li nada em português sobre o Blood On The Tracks, um dos melhores discos do Bob Dylan, e resolvi escrever eu mesmo. a primeira vez que eu li alguma coisa sobre esse disco foi no CD Now, na época em que era um site visitável, com matérias boas e tudo (descobri Son Volt lá, por exemplo), e eles consideravam o Blood On The TRacks o melhor álbum do Dylan. Tive que baixar pra crer. Dylan que perdoe minha falta de fé, e aqui eu me resigno.

Blood On The Tracks, situado entre o "artístico" Planet Waves (com a Band) e o sereno Desire, foi escrito logo depois de Robert Allen Zemmerman ter levado um homérico pé-na-bunda da sua esposa, Sara Lowndes, e isso é o tema central de todo o disco, apesar dele não contar com um "conceito" de verdade. Musicalmente falando, o disco é conservador, canções muito boas mas deferentes da subversão de "Subterrean Homesick Blues", por exemplo. Já na primeira faixa dá pra perceber o tom tristonho do álbum: "Tangled Up In Blue", que conta a história de um casal que se encontra e se separa, conforme as necessidades da estrada. Um belo trabalho de violões faz a base para Dylan recitar seus versos ambíguos. Por mais que eu fale sobre essa canção, nada vai ser parecido com isso. Portanto, passemos à próxima.

"Simple Twist Of Fate" é uma balada simples, com alguns fraseados de baixo se destacando aqui e ali. A voz de Dylan é delicada, lembra do momento do rompimento de um casal com versos sheakesperianos até. Começa descrevendo a cena como num filme, o último encontro, cada um para o seu lado, a manhã seguinte. O homem se vê negando o amor ou a saudade que sentiria da mulher, naquele medo mortal que todos os homens sempre sentem em relação às garotas: "Ele acordou, o quarto estava vazio/ Ele não a viu em lugar algum, abriu bem a janela/ Sentiu um vazio por dentro, o qual ele simplesmente não conseguiria descrever/ Trazido por um simples capricho do destino". Dylan usa a terceira pessoa durante toda a música, apenas para no final confessar: "Ainda acredito que ela era minha gêmea/ Mas eu perdi o anel/ Ela nasceu na primavera/ Mas eu nasci tarde demais/ Culpe um simples capricho do destino".

"You Are A Big Girl Now" começa com bateria e piano evocando um clima de balada soul, a caixa e o chimbau dialogando, enquanto os violões floreiam. Dylan se mostra pesaroso, porém entende as circunstâncias, ao que parece. Faça o que quiser agora que você está livre, parece dizer. "Eu estou na chuva/ E você está em terra seca/ De algum modo você chegou aí/ Você é uma garota crescida agora." Saber que ela vai se virar não alivia a dor, e Dylan aparece a cada momento mais triste e perdido; "Um pássaro no horizonte, sentado na cerca/ ele canta sua canção para mim ao seu próprio custo/ e eu sou como aquele pássarro, oh/ Cantando apenas para você/ Espero que você consiga me ouvir/ Cantando entre essas lágrimas." Promete mudar, acha que as coisas vão voltar a ser como antes, mas então percebe: "O amor é simples, para citar uma frase/ Você sempre soube, eu estou aprendendo agora/ Eu sei onde te achar/ No quarto de alguém/ É o preço que se deve pagar/ Você é uma garota crescida de qualquer jeito." Dylan não nos faz sentir pena dele, mas solidariedade, nos faz compartilhar o seu pesar e tentar no solo de gaita, no final, exorcizar alguns dos fantasmas que nos assola.

Por sua vez, "Idiot Wind" é como Songs For An American Movie Part 2, do Everclear: agora que tudo terminou, você vai ouvir. Novamente Dylan começa com uma parábola, mas em segunda pessoa, falando diretamente com a mulher que o rejeitou: "Vento idiota, soprando cada vez que você move os dentes/ Você é idiota, querida/ É um milagre que ainda saiba respirar." Nesse momento Dylan fica na tentação de se colocar como a vítima irredutível da história "Eu não consigo mais sentir você, eu não consigo mais nem tocar nos livros que você leu/ Toda vez que eu rastejo pela sua porta eu queria ser outra pessoa." Não estamos lidando com "silly love songs", nenhuma música desse disco fala de amores utópicos, e até mesmo uma canção raivosa termina com uma consciência tremenda: "Somos idiotas, querida/ É maravilhoso como ainda podemos nos alimentar." Não é o outro o único culpado. Somos todos. Uma outra interpretação pra essa canção, bem apropriada, pode ser achada aqui, em português e num site politicamente conservador...

"You´re Gonna Make Me Lonesome When You Go" retorna às raizes folk de Dylan, com violões, baixo e uma gaita no final apenas. O bardo canta o quão bom é o seu amor, e teme, avisa: "Você vai me fazer solitário quando for embora." cita poesia novamente (já havia falado de "um poeta italiano do século 13" em "Tangled Up In Blue"), evocando o caso turbulento do Paul Verlaine e Arthur Rimbaud: "Situações acabaram tristemente/ Relacionamentos sempre foram ruins/ O meu tem sido como o de Verlaine e Rimbaud." O Tom de voz é de alegria contida, conformado com os destinos determinados pelos deuses, Dylan se conforma com o seu fim.

Evocando os blues pré-eletricidade (apesar da guitarra), "Meet Me In The Morning" aparece com seus slides e sua estrutura simples. Dylan encarna o negro do Mississipi e escreve a letra como um Robert Johnson letrado: "Dizem que a hora mais negra/ É logo antes da alvorada/ Mas você não ouviria isso de mim/ Todo dia tem sido negro desde que você partiu." Novamente, ele está conformado. É o blues da vida, baby, eu não vou ter o seu amor pra sempre, e assim segue na sua tortuosa estrada, pelas leis que não estão escritas.

Por sua vez a gaitinha do começo de "Lily, Rosemary and The Jack Of Hearts" soa como "venha cá, chegue mais que eu tenho uma história para te contar". Mais tarde Dylan também fez uma canção longa contando outra história, a famosa "Hurricane". "Lily, Rosemary and the Jack Of Hearts" inspirou também "Faroeste Caboclo" de Renato Russo, só que, ao invés de contar toda uma vida e se propor a ser uma denúncia social, a música de Dylan parece mais o roteiro de um filme de bangue-bangue sem nenhum tiroteio. Nos primeiros versos, animado por um órgão esperto e um country acelerado (não chega a ser um hillbilly, creio) que vão até o fim, Dylan apresenta sua cidadezinha e o roubo que estava sendo planejado. Cada personagem que aparece ao longo da narrativa é apresentado em um verso em separado: O misterioso e fodão (Wolverine, saca?) Valete de Copas; Lily, sua paixão; Big Jim, dono da mina de diamante e filha da puta mor da vila e por fim sua esposa Rosemary, que não agüenta mais as traições do marido. Ao mesmo tempo o juiz, que veio para a cidade para um enforcamento está enchendo a cara no saloon onde a história se passa. De repente a bagunça se instaura: Big Jim tenta matar o Valete mas é assassinado por Rosemary enquanto os companheiros do Valete fogem com todo o dinheiro do banco. No fim, Rosemary é enforcada, Lily termina sozinha e o Jack Of Hearts já está em algum canto no velho Oeste. Nada demais, apenas uma história de amor e perda para relaxar um disco tão pesado.

Até porque a canção seguinte é a desesperadamente sóbria "If You See Her, Say Hello". O que importa é a voz de Dylan, clara e potente como poucas vezes foi ouvida. Ele se esforça em cada verso, procura quebrar a barreira e ser o mais sincero e humilde o quanto puder. Como o dono de um ponto de para no meio da estrada ele fala com um amigo em viagem, ou um desconhecido, não importa, ele precisa falar com alguém: "Se você a ver, diga olá, ela deve estar em Tangier/ Ela se foi daqui na primavera passada, está por lá, eu soube/ Diga por mim que estou bem, apesar das coisas estarem meio paradas/ Ela deve estar pensando que eu a esqueci, não diga que não é verdade." Dylan se vê carregando seu amor de altruísmo, "O que fizer ela feliz, eu não vou me meter", mas não consegue agüentar a saudade. Algo me diz que ele chorou pacas, como só os machões fazem, sozinhos, enquanto compunha cada verso, todos simples, desse apelo: por favor, que sabe tomar só um café, mas não me deixe tão miserável. O estrago da separação aos poucos é sentido: "Eu vejo muita gente enquanto eu viajo/ E eu ouço o nome dela aqui e ali, enquanto vou de cidade em cidade/ Mas eu nunca fui disso, aprendi a desligar/ Mas acho que sou muito sensível, ou estou ficando macio." Respeito e um coração quebrado, isso é tudo que sobrou para Dylan oferecer para a sua amada.

"Shelter From The Storm" nasce para reconhecer todo o valor da ex-esposa: "Eu estava queimado de exaustão, enterrado até o pescoço/ Envenenado nas moitas, desviado do meu caminho/ Caçado como um crocodilo e perdido no milharal." O momento que ela aparece na vida do poeta está tatuado na memória dele:"De repente eu me virei e ela estava lá/ Com braceletes prateados nos pulsos e flores na cabeça/ Ela veio graciosamente e tirou minha coroa de espinhos/ 'Entre', ela disse/ 'eu vou te abrigar da tempestade.'". A coroa de espinhos não é a única referência cristã: "Numa pequena colina de uma vila eles jogaram pelas minhas roupas/ Eu negociei por salvação e eles me deram uma dose letal/ Eu ofereci a minha inocência e recebi escárnio." Dylan é o Cristo de si mesmo, mas a salvação está nas mãos dela. Agora, depois de tudo errado, desculpa-se e reitera a sua promessa de fazer sempre o melhor por ela. "Shelter From The Storm" é um obrigado e uma obrigação, a de manter boas lembranças. O folk, todo levado no violão, termina com uma gaita característica, como a maior parte das canções do disco.

Fechando o disco está a singela "Buckets Of Rain", também só no violão, mais floreado que na faixa anterior, é o epílogo perfeito para a saga de Blood On The Tracks, que deve ter consumido muito de Dylan. "Baldes de chuva/ Baldes de lágrimas/ Tenho todos esse baldes vindos das minhas orelhas/ Baldes de raios da lua nas minhas mãos/ Você tem todo o amor, doce querida/ Que eu posso agüentar." Dylan resume tudo e despede-se, com a consciência tranqüila e alguns demônios exorcizados: "A vida é triste/ A vida é uma mentira/ Tudo que você pode fazer/ É fazer o que você tem que fazer/ Faça o que deve, e faça bem/ Eu farei isso por você, doce querida/ Pode me dizer?"

Blood On The Tracks termina assim, no silêncio e na dúvida. É o maior disco de pé-na-bunda que eu conheço, e sua audição não deve ser recomendada para aqueles que não vão tão bem em seus relacionamentos. Ou não, vai que nego se toca do que aconteceu com o Dylan e resolve se aprumar. Não sei, só sei que todo o conjunto é de uma sensibilidade ímpar, a obra-prima de Bob Dylan, mesmo que seja de uma influência menor nos seus discípulos. É assim que deveria ser, Blood On The Tracks é uma experiência solitária como atravessar o rio Estige: você pode estar acompanhado de Caronte e outras almas da mesma sorte que você, mas nunca você vai está tão só.

19.4.06

Time Is On My Side

No ano passado a teoria da relatividade restrita fez 100 anos. Além de servir de base para a Relatividade Geral e ajudar muito no desenvolvimento da Física Quântica, a teoria da relatividade acabou trazendo uma série de consequências que ultrapassaram o campo da física. Reza a lenda (provevelmente exagerada) de que 75% da economia mundial hoje gira em torno de invenções que só puderam ser desenvolvidas a partir da relatividade. Ao mesmo tempo, surgiram conceitos "não-científicos" baseados na teoria ("Tudo é relativo" deve ser o que te veio à cabeça, né? Pelo menos, sempre vem à minha).

Uma das sacadas da teoria da relatividade é colocar o tempo no campo da geometria, mostrar que movimento é relativo não apenas na esfera do espaço, mas também dentro do espectro temporal. Na verdade, são partes de um mesmo sistema (aliás, Kant classificava tempo e espaço como instâncias de percepção). Ou seja, se o bidimenssional plano cartesiano foi ampliado para um espaço tridimenssional, com a relatividade temos que contar o tempo como uma quarta dimensão para podermos representar fielmente um determinado objeto. Aliás, colocando dessa maneira, não tratamos mais de objetos, e sim de eventos. Assim, a idéia transmuta-se de um tempo linear, sempre avançando, para um tempo especial. Nada deixa de existir, apenas passa a existir em diferentes coordenadas de tempo. Tal observação pode parecer simples e óbvia, mas foi crucial no desenvolvimento da física moderna, quando Einstein constatou que, em altas velocidades, não apenas o movimento espacial, mas também o movimento temporal, é relativo. E é exatamente essa observação usada por Kurt Vonnegut para criar os trafamaldorianos, os extraterrestres que enxergam em quatro dimensões do romance Matadouro Número 5.

"Notei isso outra noite, quando o Rabbit estava lendo um anúncio. Não importa quem esteja falando, os espectros de potência são os mesmos, com apenas uma pequena diferença percentual para mais ou para menos. Por isso, você e o Rabitt agora têm algo em comum. Mais do que isso. Todos que pronunciam as mesmas palavras são a mesma pessoa se os espectros são iguais e simplesmente ocorrem em momentos diferentes, você entende? Mas o tempo é arbitrário. Você pode fixar o ponto zero onde quiser, e então dá para mover para o lado a linha temporal de cada pessoa até que todas coincidam. Aí você tem um coro enorme, sei lá, duzentos milhões de pessoas dizendo juntas 'um rico sabor de chocolate', e tudo seria a mesma voz." DJ Mucho Maas, em O Leilão do Lote 49, de Thomas Pynchon.

A música, enquanto fenômeno acústico (ondas sonoras ordenadas em certas alturas, timbres e pulsos), até pouco tempo, só poderia existir durante a execução de uma determinada peça. Ou seja, o fenômeno música se dava exclusivamente ao vivo, era efêmero e precioso. A forma escrita, uma das poucas maneiras de se registrar uma música, era limitada em relação a aspectos impostantes da experiência musical, como o timbre. Portanto, para ouvir música de verdade, as pessoas deveriam, ou aprender um instrumento, ou procurar alguém que pudesse tocá-lo.

A possibilidade da gravação arrancou a música do casulo temporal em que ela se encontrava. Uma determinada execução de uma peça poderia ser repetida, com precisa fidelidade, ao infinito (ou enquanto durasse o material onde tal peça estivesse impressa - ailás, imprimir é bem o termo, se formos pensar nas formas de gravação e reprodução utilizadas até a era do vinil). Portanto, hoje podemos ouvir a voz de pessoas mortas como se elas cantassem aos nossos ouvidos. Tal possibilidade, ao mesmo tempo que reduziu (aparentemente) a importância da execução ao vivo - e forçou novas maneiras de se pensar essa execução - também produziu formas de música que não poderiam existir sem tais tecnologias. Por um lado, a vanguarda eletro-acústica aproveitou a "crise das alturas" (aqui estou citando o Wisnik) para propor novas formas de se entender o som, trabalhando especialmente com a matéria gravada em si. E por outro lado, artistas populares que já haviam nascido após esse período de transição começaram a enxergar o produto gravado como único. Durante meio século, os discos de música popular eram a versão gravada da performance no palco, meras reproduções pálidas de artistas que podiam ser magnéticos, incendiários, intimistas - características que muitas vezes se perdiam no processo de gravação. Ao mesmo tempo que perdiam o frescor dos palcos, as músicas impressas nos sulcos dos vinis ainda não tinham descoberto as possibilidades de trabalhar com algo essencialmente gravado.

Na música popular a mudança se deu a partir dos anos 60. Se numa ilha os Beatles foram os pontas-de-lança desse racioncínio, lançando discos totalmente baseados em experimentações que iam da manipulação de timbres artificiais a fitas rodadas ao contrário, em outra ilha King Tubby inventava o dub e legitimava o estúdio como instrumento musical. Esses dois pontos focais vão se entremear durante o futuro nesse melting pot que é a música pop (cuja fronteira máxima - os 3 minutos da canção - já foi derrubada há tempos), criando uma lógica de gravação que evolui a partir do método de multi-pistas desenvolvido por Les Paul.

A partir do desenvolvimento da gravação digital, novas lógicas começaram a ser desenvolvidas. Agora a música pode ser transformada informação pura, 1s e 0s lidos via processadores, e a sua cópia não denota mais perda de qualidade - o princípio básico da pirataria moderna, tanto a do camelô quando a do P2P. A computação também nos deu interfaces gráficas com a qual podemos lidar com essas músicas. Programas como Audacity, Cubase e Logic Pro (ou mesmo mais simples, como Adobe Audition e Samplitude) compartilham de uma interface inovadora - a timeline.

Essa linha do tempo é uma modificação crucial na forma de se fazer música. Se anteriormente a mixagem era cega - baseada em pontos de cue, marcações temporais numa gravação - agora nós podemos ver representações visuais de cada trecho de gravação que sera adicionado na mixagem final. Ou seja, como antes enxergávamos pontos, retas, formas dentro de um plano cartesiano de espaço, agora temos uma representação visual da música num plano que apresenta na horizontal o tempo, e na vertical os diferentes canais que se mixam. Os canais são preenchidos por trechos de som - sejam eles guitarras, baterias, samples, vocais, batidas de automóveis - repesentados por blocos de extensão proporcinal a duração do trecho. Tais blocos podem ser copiados, movidos, distorcidos separadamente.Tal modelo de mixagem transforma o ato de construir a canção numa brincadeira de blocos Lego, uma sucessão de quadrados de Mondrian semelhante àqueles exercícios dados aos diagramadores iniciantes. Além de oficializar a mixagem como peça lúdica, dando ao leigo a oportunidade de produzir música sem saber instrumento algum, esse arranjo geométrico mostrou a cara da música gravada e a sua relação como tempo.

Comigo isso aconteceu quase como revelação. Esse negócio de tempo como quarta dimensão não tem como ser entendido no plano da realidade consensual, precisa de uma simulação. E as trilhas, sejam de áudio ou de vídeo, são um exemplo perfeito para tanto. A principal diferença entre a edição não-lienear e a edição linear é qu, na primeira, os elementos que compões o mix final não ficam presos nas suas posições. Você pode determinar precisamente em que momento da mixagem final o trecho selecionado vai aparecer, pode repetí-lo ad infinitum, pode deslocá-lo temporalmente dentro de uma realidade simulada para que possa se ajustar às suas intenções. Enquanto a edição linear precisa de um planejamento prévio, um roteiro amarrado com todo cuidado para que as coisas funcionem perfeitamente, a sua versão não-linear permite a livre experimentação, podendo gerar alternativas que passariam batidas no método mais ortodoxo. Essa flexibilidade é permitida exatamente pela "montagem". Enquanto os elementos na edição linear vão sendo adicionados dentro de uma linha temporal, na seqüência exata em que devem aparecer, o deslizamento temporal da edição não linear permite que a ordem seja livre.

Essa mudança na lógica de composição faz parte da mudança na percepção temporal proporcionada pelas novas tecnologias. O relógio, rígido, industrial, feito para vigiar, para fazer valer o trabalho realizado pelo operário, criado para bater o ponto, é substituído pelo tempo digital, virtual, flexível. O tempo deixa de ser o tempo do trabalho e passa a ser o tempo da informação. Livre, diluí-se indefinidamente: desde adolescentes nostálgicos por aquilo que não viveram até septuagenários obcecados com qualquer novidade - seja de vestuário, tecnológica ou ideológica. O tempo é preguiçoso ou frenético, plácido ou reto. O ritmo é você quem determina: e no auge da música portátil e sem fronteiras, o tempo escorre pra dentro dos seus ouvidos.

7.4.06

For Her

Olha só: 21 = 3 x 7. Os dois números mais simbólicos possíveis. 21 não é simples, não é fácil. Como se tivesse sido fácil até agora. Foi uma longa jornada de dores e alegrias, decepções e conquistas. Parece que a gente ganha e perde a cada instante, né? Imagino que você nem sabe como chegou até aqui, como se transformou nessa mulher. E lembro que você não sabe nem a ponta do iceberg que você deixa transparecer no teu olhar. Você é mais que a minha inspiração, ou o seu conjunto de gostos estéticos (rock 60s + punk 77 + girl groups + glam 72 + indie fofo + Tara McPherson + Eric Stanton + Breakfast At Tiffany´s + Trainspotting + Mate-Ne Por Favor + Tom Wolfe + F. Scott Fitzgerald + Oscar Wilde + Courrèges + Chanel + i-D + Simples + TPM + Dazed & Confused + o que você inventar), mais que os livros que você não leu, os filmes que você não assistiu ou as músicas que você não ouviu, mais que seus brilhantes olhos de esmeralda, seu cabelo - os fios a partir dos quais os sonhos são tecidos, mais que seu rosto delicado e mais ainda do que esssa força toda disfarçada no teu pequeno corpo. Agora começa outra jornada, você vai perceber. E não importa quem está do teu lado, ou contra você, importa é que você tem que acreditar em si mesma, nesse milagre que é a vida, nesse arrebatamento dos 21 anos. Tudo que eu posso prometer são mais alegrias e tristezas, decepções e conquistas. E sim, I´m only here to love you.

I Might As Well Be Dead

A renascença psicodélica deu-se no turbilhão criativo do meio dos anos 60, a partir da convergência catalisada pelos Beatles e reverberada, tanto na América quanto na Inglaterra. A mistura altamente volátil de Motown, skiffle, rock´n´roll, country, blues, canção de rádio e outras mumunhas dos Fab Four desencdeou um processo de mutação na música jovem. De um lado, os ingleses reinventavam o blues a partir de uma matriz estrangeira, alienígena, reinterpretada arbitrariamente, dando origem a um novo gênero. Nos EUA, por sua vez, o potencial transformador dos Beatles permitiu que artistas díspares como o adulto bardo folk Bob Dylan e os ensolarados cantores adolescentes dos Beach Boys pudessem ser vistos como peças de um mesmo quebra-cabeças.

Ao lado de mitos fundadores como os Merry Pranksters, a psicodelia pode ser definida através de um punhado de canções-chave, que ao mesmo tempo que aglutinam a urgência do rock com o processo de expansão mental derivado dos alucinógenos, também reescrevem um modo de fazer música. A essa estirpe pertencem músicas como "Eight Miles High", dos Byrds (a irrealidade transmitida pelas brumas - e a queda entre o paraíso cristão e o espaço sideral), "Visions Of Johanna", de Dylan (a eterealidade esboçada no órgão de "Lika a Rolling Stone" ampliada) e "Good vibrations" dos Beach Boys (a reconstrução do real a partir de formas clássicas - com o permanente gosto do pôr do sol no pacífico realizado em três movimentos [com refrão!]) e "Rain", dos Beatles.

Lado B do campacto de "Paperback Writer" (outra canção vital do repertório psicodélico), "Rain" é a ponte entre a refinação pop do álbum Rubber Soul e a liberdade agressiva do disco seguinte, Revolver. O riff de abertura fluido espalha-se pelo resto da canção, pontuada pelo ritmo notadamente esfumaçado da bateria. Dentro das possibilidades psicodélicas, uma canção pode dissolver, encobrir, remodelar ou simplesmente fugir da realidade, mas "Rain" propôe-se a encontrar tal ilusão de frente, como num rito de passagem.

"Se a chuva vem/ Eles correm e escondem as suas cabeças/ Eu bem poderia estar morto- se a chuva vem". O coro sempre lembra da chuva - mas com um "se", um "porém", enquanto Lennon questiona a prórpia impressão de se estar vivo. John rebate com aquele exalar arrastado que mais tarde levará a "I´m Only Sleeping", e aparece como a dilatação do tempo em si. "Se o sol brilha, eles deslizam para a sombra" - Lennon coloca a culpa nos "outros", sempre se escondendo, ciosos em manter as barreiras da realidade consensual intactas - sempre à sombra, sob uma cobertura, talvez a própria caverna de Platão.

O refrão é entermeado por um repicar análogo ao dos sinos, um chamado. Aqui, é tempo de despertar : "Chuva/ Não me importo/ Brilho/ O tempo estã bom", explica, mostrando que, de um modo ou de outro, a realidade está lá fora. Ou aqui dentro. E convida: "Eu posso te mostrar/ Quando começa a chover/ Tudo permnece igual". E então, explicita a ilusão, sem metáforas, direto e simples, "Você pode me ouvir, quando chove e [o sol] brilha/ É só um estado da mente". A transmutação pode não estar comleta, mas o ouvinte está desperto. Pode não encontrar a sua prórpia realidade, mas aprende que esta aqui é falsa, é construída e reforçada, uma parede que pode ser derrubada, rompada ou simplesmente esticada.

O ponto de partida para o remix da realidade é a própria música em si. O final de "Rain", nebuloso, traz uma peça chave, que, se já era conhecida da vanguarda erudita, foi ali introduzida no pop: a manipulação direta do som gravado. Quando a fita com a voz de Lennon é tocada de trás para frente, uma certeza se rompe: a música gravada é um ser separado, ema entidade diferente daquela música executada ao vivo. Onde os Beatles se remixam, abrem as portas da própria percepção musical. O pop se expande, aquela fala que parece um dialeto eslavo marca o fim da adolescência - de novo, o despertar. E uma vez acordada, essa música não conhece mais limites.

5.4.06

Notihing is real - in the Strawberry Fields

Numa passada inocente pelo shopping eu me deparei com o livro do Alex Antunes (A Estratégia de Lilith) por 2,90 na Porto. Um sinal, com certeza. Levei, no cartão da patroa - que estava levando a Dazed & Confused do mês, cada vez mais refinada, essa menina. Realmente é um puta livro, mas o que mais me chamou a atenção, dentro do turbilhão de conexões neurais pós-livro, é o prórpio repertório que o Alex escolheu para citar ao longo do livro.

Eu falo isso porque o livro hegou dentro de uma cadeia de sincronicidades, que vão desde o podcast do Matias citando a conexão Lex-CSS (Vida Fodona 007) até agora de manhã, depois de terminar o livro, quando fui lavar a louça de ontem, tropecei com aquele baralho arruinado que fica atirado sobre a mesa da cozinha e vi uma dama de paus. Fui pegar um pano em cima da mesa e pimba, aparece uma dama de ouros. É melhor prestar atenção quando as coisas se colocam de maneira tão incisivas.

Mas bem, voltando ao repertório do Alex, não me espanta ver como ele casa tão bem as referências (porque um livro mudernoso têm que estar cheio de referências - mentira, qualquer obra está cheia de referências, a única diferença é que está na moda explicitá-las) pop com um esoterismo mais aprofundado e aqueles resquícios da "alta" cultura com os quais a gente ainda convive - que na verdade foram simplesmente absorvidos pela cultura pop pelo vigor de suas representações.

"A Estratégia de Lilith" é um romance de passagem, no sentido mais mágicko do termo. Trata de transmutação, individuação, especialmente do processo em si. Fico pensando que, no auxílio de um processo desses, pode-se escolher entre inúmeras práticas, cada qual com seus arquétipos, símbolos e rígidos sistemas. Intuitivamente, Alex escolheu por um melting pot que atravessava toda tentativa de classificação e hirearquização presentes tanto nas religiões quanto nas ordens mágickas, como se incoscientemente seguisse o caminho da Magia do Caos. (vai no link que o Lúcio explica isso melhor que eu)

O mais interessante é a presença massiva da cultura pop nisso. Alex impõe atributos simbólicos a Serge Gainsbourg, Miles Davis, Iron Maiden, e mesmo ao seu próprio Akira S & As Garotas Que Erraram. Sozinho, traçou seu "Alfabeto do Desejo" (falei pra ir no link, não?), e nele o papel da música pop é tão relevante quanto a mitologia africana ou judaica - talvez até mais.

E isso não acontece à toa. Como eu costumo dizer para mim mesmo, o papel principal da arte é questionar a realidade consensual, se colocar acima dela. E a música pop se coloca como nova desbravadora de arquétipos nesse sentido - por trás da sua fácil digestão, correm inúmeros padrões míticos. A música pop trabalha com imagens (dá até para imaginar buttons como símbolos de poder) palavras de ordem, ritmos de transe. Depois da abertura consciente para o oculto (que é mais consequência que escolha deliberada) para o oculto na virada dos 60 para os 70, esse novo sujeito do inconsciente coletivo traduziu arquétipos (como atesta aquele texto sobre os nerds), imaginou sua prórpia realidade (atrevés, por exemplo, das propriedades especiamente mágickas do sample) e pôde servir como guia e apoio dentro dos processos de transmutação.

Voltando ao "Alfabeto do Desejo", nosso repertório afetivo musical é poderoso por si só. Eu penso no Grenade do Rodrigo Guedes e a estrutura de poder que certas obras têm em torno daquilo - tá, não só do Grenade, mas do Rodrigo em si. In An Aeroplane Over The Sea do Neutral Milk Hotel e todo o Neil Young (persona arquétpica por si só) têm uma força tremenda, não de influência apenas, mas energética, em torno daquelas composições. Não estou querendo tratar de traçar os arquétipos relaciondos à esta ou àquela obra e artista, foi apenas um exemplo deliberado. Convido à pensar na relidade em si, e como ela pode ser desmontada a partir de um campo novo, de um não caminho não traçado. Eu tenho tentado achar meus próprios pontos de convergência - canções, álbuns e artistas que expliquem e auxiliem na compreensão da minha própria fatia de realidade. E quais são os seus?

1.4.06

Mechanic Lullabies

No natal eu comprei pra Helô um caixinha de música na Imaginarium. Não uma daquelas com bailarinas num espelho, na verdade um negócio um pouco mais tosco e, por isso mesmo, mais divertido. É um aparelinho nu, sem nenhuma cixa em volta, só o mecanismo responsável pela música, e uns furos pra colocar parafusos e afixar a caixinha (acionada manualmente) em qualquer superfície - de preferência, de madeira. Aquele engenho ali, com uma manivelinha do lado, que toca "You Are My Sunshine", esconde sem querer uns segredos.

A notação musical é uma "invenção" grega, que permite a reprodução de molodia, harmonia e ritmo dentro de uma convenção simbólica, uma gramática própria e quase verbal. A idéia principal da partitura é possibilitar, num momento em que a tecnologia não permite a gravação direta dos sons, a reprodução mais fiel possível de uma determinada composição - numa sinfonia, cada instrumento da orquestra tem sua própria partitura.

A caixinha de música é um "instrumento" moderno, e começou a ser fabricada, em escala, na Suíça (famosa pelos seus relógios) no início do século XIX. Tal caixa é formada por duas peças principais: um cilindro de metal com marcações em relevo e uma peça em metal com diversas palhetas que formam uma escala temperada. Quando girado, as marcas do cilindro movimentam as unhas na ponta de cada palheta, produzindo as nostas. As marcas estão dispostas na sequência melódica desejada, e com um espaçamento que permite que a melodia seja reproduzida perfeitamente, caso a caixinha seja tocada numa velocidade constante.

As marcas no cilindro, portanto, não são apenas notações: são um dos primeiros códigos programados existentes. A função das marcas não é a de comunicar a alguém um certo código, mas sim, servir como base de dados, apenas legível pela "máquina", para a execução de uma rotina. Não a toa, as primeiras caixinhas de música utilizavam discos de metal no lugar de cilindros - o caminho inverso entre o fonógrafo e o gramafone. Aliás, a caixinha pouco tem a ver com o processo de gravação. O sistema primitivo de armazenamento musical por gravação, que persistiu até os LPs, é totalmente analógico - consiste em imprimir ranhuras em espiral num disco, que mais tarde vibrariam a ponta de uma agulha amplificada e, voilá - está criada a música.

As caixinhas, por sua vez, eram primitivamente digitais. Continham um código sequenciado que só poderia ser "lido" pelo sistema certo: o conjunto de palhetas temperadas para aquela música. Existia uma disposição específica para tais palhetas, que costumava variar de caixinha para caixinha. Trocar os cilindros de caixinhas, invertê-los, era descobrir novas melodias a partir de uma matriz não programada para aquilo. Esses cubos, paralelepípedos e outras formas geométricas são os avós dos instrumentos eletrônicos - e aqueles moleques curiosos que os desmontavam para desvendar o mistério daquela música mecânica, foram os primeiros experimentalistas, os ancestrais do Kraftwerk.

Mãe, ó eu no Vida Fodona!!!

Inaugurando um novo sub-gênero: o comentário em áudio para podcast. E sendo zoado pelo Matias, com razão - o que importa não é falar merda, importa que agora a galera tem que se pilhar em encher a caixa postal do rapaz com seus próprios comentários.

Pegaê

31.3.06

It´s a time I remember, oh, so well

O clichê diz que “a história é escrita pelos vencedores”. E os lugares comuns por vezes estão esmagadoramente certos, especialmente este, que versa exatamente sobre a fragilidade da suposta acurácia do registro histórico. Dogmas são impostos e derrubados, personalidades são deletadas da memória coletiva (como bem sabia fazer Stálin), tiranos podem ser heróis e os derrotados são automaticamente alçados à categoria de malfeitores. Tais distorções existem pelo simples fato de que a história em si é administrada por homens, e por mais que exista um esforço, de tempos em tempos, em manter uma narrativa “fiel” à nossa realidade consensual, a história só existe enquanto criação, evento encadeado de uma maneira de certa forma lógica e registrado num processo linear, que, porém, não está imune às distorções que possam ser cometidas por aqueles que a registram, guardam, copiam e administram. Tais “distorções” não ocorrem apenas num campo “pessoal”, tratando deste ou daquele historiador, mas sim dentro de um processo de geração de uma realidade consensual, que, ao mesmo tempo em que se baseia na história como regra, a transmuta, não só em direção ao futuro, mas também em direção ao passado.

A Guerra Civil norte-americana sempre foi pintada em termos maniqueístas: os heróis libertadores do norte contra os nojentos escravocratas do sul. Não que isso seja especialmente uma mentira, neste caso, uma das principais causa da cisão entre as regiões dos EUA foi exatamente a divergência em relação à repugnante prática da escravidão. Ou seja: o Norte estava com toda a razão. A guerra foi de certa forma necessária, pois evitou a divisão do país, e conseqüentemente, a criação de um Estado essencialmente escravocrata. Porém, a guerra gerou um abismo profundo dentro dos EUA, traçando eternamente uma linha que já era acentuada entre os então confederados e os unionistas. Um país que, mesmo potência econômica, nunca superaria as suas diferenças internas, cabendo aos sulistas a fama (muitas vezes justa) de conservadores racistas, e ao norte a posição de líder modernizador da nação. Depois do final da Guerra de Secessão, os EUA ficaram com uma economia fragilizada – mas com uma sensível diferença: os estados do norte, mesmo que com um maior número de baixas, tinham do seu lado uma potente indústria, fomentada pela guerra, que pôde superar o trauma econômico, enquanto o sul, antes pobre, e agora miserável, ficava à mercê de qualquer crise na economia do país (como, por exemplo, o pânico de 1873). A reconstrução do sul, além da abolição (mal preparada, que deu abertura a um sem-número de leis racistas que durariam até os anos 60), foi um processo amargo e doloroso, especialmente àqueles que não estavam entre os senhores de escravos, mas que ainda assim pagaram o preço da guerra.

The Band ganhou este tão incisivo, e ao mesmo tempo, simples nome, quando eram a banda de apoio de Bob Dylan. Depois de tocar com o pioneiro do rock canadense Ronnie Hawkins por algum tempo, haviam se transformado nos The Hawks. Após a conturbada turnê do bardo em 66, acabaram se juntando numa casa em Woodstock (a Big Pink) para ensaios e experimentações – que mais tarde se tornariam as míticas Basement Tapes, e também geraram o álbum Music From The Big Pink. Nessa época, os vizinhos passaram a se referir àqueles cinco barbudos estranhos apenas como “a banda”, epíteto que foi adotado aos poucos. Após Big Pink, a Band gravou um segundo álbum, lançado em 69, intitulado simplesmente The Band. Ali, se aprofundavam ainda mais nas raízes da música norte-americana (detalhe: só um membro do grupo era nativo dos EUA – o baterista Levon Helm, nascido no Arkansas), criando um folk-country-rock que é a base tanto dos Eagles quanto do Wilco, num gênero que mais tarde seria chamado (especialmente nos EUA) de “Americana”. The Band, o álbum, é parte crucial da “República Invisível” divisada por Greil Marcus – um resgate e uma reconstrução (não só na acepção de reabilitar, mas na de criação de novos sentidos) da história norte-americana através da canção. A música recebia um tratamento que soava arcaico e, por conseqüência, atemporal – um re-fabulação de uma América mítica, que começava na capa e ia até o âmago de cada faixa. As músicas faziam oposição à psicodelia reinante, tanto na sonoridade quanto nos inusitados temas: a penúria rural (“King Harvest [Hás Surely Come]”), o envelhecimento (“Rockin´ Chair”) e a Guerra Civil (“The Night They Drove Old Dixie Down”).

Iniciando com um clarinete em tom de marcha fúnebre, “The Night They Drove Old Dixie Down” logo explode em tristeza. Levon Helm, atrás de seu kit de bateria, assume a persona de Virgil Caine, um ex-soldado que servia nas linhas de trem de Downville, num trem de carga que levava suprimentos para Richmond, capital dos Confederados, “até que a cavalaria de Stoneman veio e destruiu os trilhos”. A interrupção da linha de abastecimento aparece como símbolo da derrota dos sulistas na guerra – complementado pela queda de Richmond, em 10 de maio, como citado na canção. “É um tempo que eu bem me lembro”, canta com um carregado sotaque Helm antes de explodir no refrão: “A noite em que eles acabaram com o velho Dixie/ Todos os sinos repicavam”. “Dixie” é como eram/são conhecidos os estados do Sul dos EUA que acabaram se separando da nação – uma alcunha para a Confederação.

Helm canta a música com vigor e, ao mesmo tempo, em desespero. Além de único norte-americano na banda, também era sulista – e Robbie Robertson, compositor principal do grupo, diz ter escrito esta canção inspirado no baterista (que, por sua vez, afirma ser parceiro na composição). Existem partes específicas em que Helm se enche de desespero: quando fala da fome em 65, do irmão morto, como se a história de Caine fosse a sua. E ali, no pesar daquela canção, a história não era só dele, mas de todos os sulistas. O sotaque carregado é embebido em blues – não o ritmo, mas o sentimento – e um orgulho difuso, a tristeza empedernida daqueles que insistem em sobreviver. Esse é o tom que embala o refrão, uma nação derrotada que ainda tem orgulho de si mesma: “Todas as pessoas cantavam/ Na na na na na...”, como numa canção de ninar.

Descrente, Caine faz pouco caso da esposa que o chama para ver o general Robert E. Lee, comandante confederado. Prefere tratar do seu próprio amargor “Eu não me importo em cortar madeira/ E não ligo se o dinheiro não é bom/ Você pega o que precisa e deixa o resto/ Mas eles não deveriam ter tomado o que há de melhor”. Ele sabe o preço que se paga pela derrota, mas não se conforma com a maior perda de todas, que acaba sempre se sobressaindo em guerras: a contagem dos corpos. A estrofe seguinte é cheia de significado: “Como meu pai antes de mim/ Eu trabalharei a terra/ E como meu irmão acima de mim/ Que tomou o partido rebelde/ Ele tinha apenas dezoito, cheio de orgulho e coragem/ Mas um ianque o deitou em seu túmulo/ Eu juro pela lama sob os meus pés/ Você nunca destrói um Caine – nem na derrota”. A soma do lúgubre e vigoroso instrumental com o inspirado vocal causa um efeito de simpatia, de compaixão (no sentido mais literal possível: sofrer junto, fazer do sofrimento do outro o meu). E a canção se torna um incrível libelo anti-guerra, invertendo o maniqueísmo. O sul não é um inimigo maquiavélico porque nunca houve um inimigo maquiavélico, apenas seres humanos. Colocando-nos no lado derrotado, a Band dá a dimensão funesta da guerra, onde nada se ganha, apenas uma pilha de corpos, e reduz a estatística para o humano, onde a tragédia de se estar vivo reverbera. Não existe derrota, porque a derrota é de todos – os corpos queimados em napalm no Vietnã são os mesmos desintegrados pela bomba atômica no Japão. E os mesmos apodrecendo no inverno da Virgínia.

PS: Gostou do texto? Então corre para esse artigo, muito mais completo e significativo.

30.3.06

Quentinha

Tá, nem tão quente assim, mas, lá vai: as novas contratações do selo Trama Virtual são Zeferina Bomba e Rock Rocket. Muita gente já sabia antes, mas a confirmação veio via podcast. Aliás, ainda não ouviu o podcast do Dago, da Fer e do Six? Demorô. Vai aqui.

8.3.06

O pós-intelectualismo em pessoa

O Matias traçou de canhota graciosas linhas sobre a canção do Cansei de Ser Sexy que batiza este blog. Mas o filé mesmo é a cobertura que ele e Fred Leal (chefe da maviosa revista Bala) fizeram da cena Recifense: o Vida Fodona, mais que um podcast, um jardim de padrões caóticos armazenados na forma de arquivos de áudio não editados. Só gente boa: Thaís Aragão, Rodrigo Lariú, Bruno Ramos, Cardosão, Alex Antunes, Silvio Essinger, Fabrício Nobre, Diego Assis, mais as bandas, como Jumbo Elektro, Mundo Livre, Barbis, La Pupuña...

12.2.06

Everyone is a little queer

Certeza é uma opção que saiu do cardápio do cotidiano lá pelo fim do século XIX. Pouco a pouco, todas as convenções sociais e preconceitos foram se abalando: relgião, raça, sexo. Claro, dentro de um turbilhão caótico, mas se modificando. A visão ampla deste milênio mostra que todas as opções foram testadas, aprovadas e estão prontas para serem aplicadas. Mesmo que ainda não totalmente consolidados, os movimentos para os direitos civis, de liberação feminina e gay amelharam um número enorme de vitórias.

Mas ninguém explicou para a gente como conviver com todas essas diferenças. Se aprende a viver neste mundo complexo na porrada, não atraves de um manual de instruções, com a intuição substituindo a etiqueta formal. É só ver a cara de desconcertado com a qual a maioria de nós, héteros, somos abordados por alguém do mesmo sexo. Sensação estranha, um choque quase. Será que eu pareço gay? Estou dando os sinais errados? E o contrário também incomoda: um hétero que se apaixona por alguém do sexo oposto, para depois descobrir que tal pessoa é gay.

Pinkerton, o segundo álbum do Weezer, é complexo, sério, maduro. Como o Thw Who, que tinha o projeto de ópera-rock Lifehouse, que acabou transformado no álbum Who´s Next, Pinkerton inicialmente deveria chamar-se Songs From Th Black Hole, uma "space-opera", e acabou lançado como um CD levemente conceitual, dialogando com a ópera Madame Butterfly, de Puccini (Pinkerton é o nome de um dos personagens da peça). Comparado com o multiplatinado Blue Album, era especialmente denso, escuro, Rivers Cuomo enfrentando seus demônios, expondo sua vida como um John Lennon nerd. O coração quebrado de "El Scorcho", o corpo e a alma em trapos em "The Good Life", a ressaca do hedonismo de "Tired Of Sex" - um quadro também refletido nas melodias tortas, no artificialismo plástico do moog, nos vocais desafindos, num desleixo proposital - não o desleixo cool do lo-fi, mas um desleixo vindo do cansaço. Foi escorraçado pela crítica quando lançado, e vendeu pouco - só para], poucos anos depois, entrar nas listas de melhores discos dos anos 90.

Começando como uma caixinha de música indie, "Pink Triangle", oitava faixa do álbum, é um dilema desses. É a história de um menino que se apaixona por uma menina - que gosta de meninas. "Quando eu estou estável por tempo o suficiente/ Começo a procurar por amor/ Vejo um pequena num vestido floral/ Minha mente começa com os arranjos/ Mas quando eu começo a sentir aquele enlevo/ Descubro que eu enganei a mim mesmo/ Ele nunca sairia comigo/ Mesmo que eu fosse a última garota na Terra". O erro de Rivers Cuoumo o faz sentir-se mal ("Eu sou idiota, ela é uma lésbica/ Achei que tinha achado a garota da minha vida/ Era tão bom quando estávamos casados na minha mente/ Mas não seria o certo estarmos casados") e fantasia ("Se todo mundo é um pouco estranho/ Ela não poderia ser um pocuo careta?")

[Parêntese desnecessário: interessante como em inglês as expressões são ainda mais excludentes. "Queer", sinônimo para homossexual, significa "esquisito, estranho", enquanto "straight", heterossexual, significa "reto, correto", e também "careta".]

A situação de Rivers Cuomo não é exclusiva dela, pode ser um tanto comum. Nossas definições mais básicas de orientação sexual são biológicas (pelo menos em tese): homens gostam de mulheres e mulheres gostam de homens. Extrapolando um pouco para as aparências, homens que parecem e agem à "maneira feminina" gostam de homens, assim como mulheres "masculinizadas" gostam de mulheres. Ao mesmo tempo que soa como preconceito - não sem razão - também é uma forma de comportamento socialmente válida. Mas o que fazer quando a realidade se mostra diferente do que imaginamos?

Conforme a sociedade segue aceitando o comportamento homossexual, tais táticas de percepção tornam-se inúteis: não é preciso usar maquigem para ser gay, assim como uma lésbica pode ter cabelos compridos e vestir uma saia rodada. Dessa forma começam as confusões e desilusões amorosas. Ninguém vai querer, e muito menos deveria andar, com um crachá escrito [homo] - [hetero] - [bi]. E mesmo assim não ia adiantar muita coisa: Rivers Cuomo não percebeu o triângulo rosa na manga da guria. É como em "Procura-se Amy": não estamos preparados para isso, não sabemos como encarar.

Muita gente defende que as comunidades homossexuais se fechem em guetos pela falta de aceitação social. O que não deixa de ser mentira, porém escamoteia outro fato. Se já é difícil, como mostrou o Weezer, para um hetero se apaixonar por um homo, imagine alguém que pertence a uma minoria (estudos afirma que em torno de 6% da população mundial é gay) ter que lidar com o seu próprio coração batendo mais forte por alguém com quem você sabe que de forma alguma vai sentir a mesma coisa por você... repetidamente. O gueto dá conforto, você sabe por quem pode se apaixonar, com quem pode se relacionar. Dentro do gueto você pode ser quem quiser, e também se relaciona com pessoas que podem ser quem elas quiserem. Mais fácil, menos doloroso.

Ao mesmo tempo, enquanto o gueto se fecha para o resto do mundo, corre o risco de perder mudanças históricas. Um exemplo é a hostilidade das lésbicas "dasantiga" com as "mini-lesbians". Enquanto as mais novas desbravam territórios e descobrem a própria sexualidade em público (claro que elas podem estar fazendo isso só para pegar menino, e daí? E se elas estiverem apenas provocando?), quebrando barreiras sociais por pura rebeldia adolescente, um numero expressivo de lésbicas já decididas, inclusas no gueto, falam das mais novas com desdém. Porém, as mais novas são consequência, e ao mesmo tempo, tornam-se causa. Tanto elas quanto o lesbin-chic dos anos Madonna são frutos de uma sociedade mais sadia, mais disposta a lidar com as diferenças. E ao mesmo tempo, formam uma geração mais tolerante ainda, de seres hmanos que não se importam com a orientação sexual dos outros - a não ser quando o assunto é sexo, obviamente.

E enquanto a sociedade avança, aprendemos aos trancos. Será que chegaremos a um dia que saberemos por quem nos apaixonar? De jeito nenhum, tomara que os guetos se dissolvam cada vez mais e que todo mundo possa ser o que quiser. E as Joeys e seus triângulos cor-de-rosa por quem nos apaixonamos? Vão continuar existindo e colocando mais caras em saias-justas. São fatos, mudanças às quais os heterossexuais têm que se acostumar. Nem que seja na base da decepção e do espanto. Não um sacrifício, mas uma atitude de naturalidade, que possa atingir os dois lados. Muito melhor que preconceito e isolamento.

10.2.06

"My Chemical Romance Is Not EMO!!!"

Pra mim essa molecada toda dos anos 80 (Hüsker Dü, Rites Of Spring) era indie, hardcore, seilá. Mas a menininha insiste que eles eram os verdadeiros emos. Que sou eu pra discutir?
Eu gosto bastante de ver esse pessoal querendo mandar num rotulozinho de merda qeu nem o emocore. Ainda se estivessem discutindo o que é krautrock, esses negócios nebulosos...

Ahhh, link do Fake

1.2.06

A infável foice do tempo...

É só dar uma passada de olho pelas fotos do segundo Juntatribo para perceber que visualmente, os anos 90 ficaram bregas rapidinho.

Aumenta, Que Isso Aí É Roquenrrou!!!

Existe um gap de informação no rock brasileiro, uma década em branco. Se a Jovem Guarda e a Tropicália incendiaram o gosto pelo ritmo anglófono durante a década de 60, criando referenciais no imaginário pop e um mercado para o rock produzido durante o período "invasão britânica-psicodelia-ressaca", durante os anos 70 esse mercado arrefeceu e os artistas de rock ficaram na miúda. Um Raulzito aqui, Tia Rita acolá, nada que movesse multidões, até que o rock de bermudas carioca colocasse as guitarras de novo no mapa.

Dentre as trocentas e tantas mil formas que o rock adquiriu na "década do eu", talvez a que menos teve impacto no Brasil foi o hard rock/heavy metal (mentira, foi o glam inglês), extremamente popular do lado de cima do Equador. Claro que os artistas de maior projeção (Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath) até que atravessaram a fronteira, mas ainda assim, muita gente, como o popular (nos EUA) Grand Funk Railroad, ficou de fora.

E então que no final dos 90 surgiu um tal de stoner rock. Tá, as raízes vinham do grunge, mas esse negócio stoner estava muito mais para a maconha que para a heroína. No rastro do sucesso do Queens Of The Stone Age vinham artistas como Fu Manchu e Nebula, e também "veteranos" como Kyuss e Monster Magnet. Essa onda sim, bateu aqui, e gerou filhotes como Flaming Moe, MQN e mesmo os antes grunges Walverdes.

Só que, olhando de fora, parecia que toda essa nova penca de artistas, que forma uma ainda reduzida cena à parte, cujo epicentro é Goiânia, soava como se não tivesse idéia de que existia muita coisa antes deles, gigantes do róque que soam apenas como papo de tiozinho cabeludo: Budgie, Mountain, ZZ Top. Típica suposição de quem está de fora: o selo stoner Válvula Discos montou a coletânea online (pode baixar já, moleque!) Achados e Perdidos, com versões de clássicos gravados por uma nova geração de cabeludos fedendo uísque barato.

Dá uns dois CDs, 27 músicas no total. E engana-se quem acha que é só a fina flor gringa que é aqui representada: dez das canções são de artistas nacionais da mesma década (Qual década? Tente adivinhar pelo veículo estampado na capa da coletânea). Enquanto o Vincebuz redime Parchment Farm, do Blue Cheer, O Flowstone detona uma versão superpesada de Não Fale Com Paredes, do também obscuro Módulo 1000. Se o Cabrura põe ZZ Top numa briga em Beer Drinkers & Hell Raisers, o Água Pesada leva os puristas ao nocaute com sua versão de Alô Alô Marciano, gravada originalmente por Elis Regina. Se o Grand Funk Railroad e o Mountain tem duas músicas cada (Sin's A Good Man's Brother, com o Lazy Dog e Got This Thing On The Move, com o MQN, do primeiro; e Dreams Of Milk And Honey com o Saturn XII e Mississippi Queen com o Rock n’Roll Soul, do segundo), o nosso maior fenômeno roqueiro dos anos 70, o Secos & Molhados, também é homenageado duas vezes (BillyGoat com Amor e Kali com Sangue Latino).

Mais interessante que o resgate gringo, que vai do Focus ao Syd Barret, é o resgate brasileiro. Na tentativa de colocar o que é feito hoje como um sucessor natural de um ancestral "menos refinado", recicla-se Saracura (com o Xote do Jaguarão, de Kledir Ramil) e mesmo Raul Seixas (com o Rock do Diabo). Não que essas influências não existam, mas funcionam num caminho inverso: primeiro stoner, depois hard rock, depois o Brasil, assim como os "neo-mods" se apoiam na Jovem Guarda. Diferente da geração indie (e, em partes, do pós-punk paulistano), não é preciso carregar a pecha de macaquinho de gringo: o som deles também tem raízes no Brasil, oras.

Essa curiosidade pelos porões do rock brasileiro é fruto da equação Internet e P2P + arqueólogos pop, que resultou tanto na democratização do Tim Maia Racional quanto na coletânea Brazilian Nuggets, a ponte definitiva entre a Jovem Guarda, a Tropicália e o rock que se fez pelos 70s. Esse gosto pela poeira permitiu definir um lastro histórico,a partir de onde esses novos artistas podem seguir em frente, se colocar dentro de uma continuidade. E ao mesmo tempo, descobrirem-se como brasileiros, não apenas como metaleiros, injeta inteligência e abre as portas para um experimentalismo menos tacanho, mais colorido e divertido. Afastando o termo "rock brasileiro" do oxímoro, o rock fica mais fácil e, mesmo que menos perturbador ou traidor (dependendo do lado em que se está), tem mais sentido e razão.