28.6.06

I bet you´re wondering how I knew...

De repente, sozinha, uma caixa, um toque seco. Então o piano elétrico Wurlitzer começa a tocar aquele riff conhecido. Uma meia-lua começa a tremer, como se fosse o som de uma cascavel pronta para dar o bote. A bateria vem marcial, a guitarra começa a aconpanhar o piano e entram as cordas subindo, juntamente com a familiar voz, uivando um lamúrio.

"I Heard It Trough The Grapevine" é uma composição de Norman Whitfield, com letra de Barrett Strong. Letrista da Motown, Strong também escreveu, em parceira com Whitfield, outros clássicos, como "War", de Edwin Starr e "Papa Was A Rollin´Stone", dos Temptations, além de ser o cantor do primeiro grande hit da gravadora, "Money" (é, aquela dos Beatles). Whitfield também era produtor, especialmente dos Temptations - banda que mais tarde seria conduzida por ele para o soul psicodélico.

Whitfield, consciente da qualidade da música em questão ("I Heard It...") , gravou-a inicialmente com dois grupos: Smokey Robinson And The Miracles e The Isley Brothers, ambas rejeitadas pelo "controle de qualidade" que a Motown mantinha. A canção só foi fazer sucesso com Gladys Knght & The Pips - que virou o single mais vendido da gravadora. Porém, antes dessa versão, Whitfield havia gravado a cançaõ da forma que ela entraria para a história, com Marvin Gaye, ainda em 67. A versão de Gaye, infelizmente, foi rejeitada por Barry Gordy, chefão da gravadora. Um ano depois, quando estava-se decidindo as faixas que entrariam no álbum "In The Groove", Whitfield deu um jeito de encaixar "Grapevine" na lista final. Apesar do compacto oficial do disco ser "You", logo os DJs de todas as rádios estavam tocando "Grapevine". Quando lançada finalmente em single, a canção ultrapassou as vendas totais da versão de Gladys Knight, tornando-se o compacto mais vendido da gravadora (até que "I´ll Be There", dos Jackson 5 a desbancasse do posto).

Ouvindo hoje, dá pra saber porque Gordy vetou a versão de Marvin Gaye. "Grapevine" foi um marco na história da gravadora, representando o momento onde as canções açucaradas, tanto na forma quanto no conteúdo, dão lugar a composições mais sérias. Na própria carreira de Gaye, representa uma virada: depois do colapso que sua parceira na Motown, Tammi Terrel, sofreu em cima do palco, Gaye acabou enveredando por caminhos mais "adultos", que resultariam no álbum "Wht´s Going On", lançado em 71.

A letra de "Grapevine" trata de fofocas e um relacionamento que parece chegar ao fim. Gaye foi instruído por Whitfield a manter seu vocal um pouco acima do seu registro natural durante toda a canção - assim criando na voz o efeito cru e desesperado que mais tarde se tornaria marca registrada do cantor. "Aposto que você imagina como eu soube/ Dos seus planos de me fazer triste/ Com um outro cara que você já conhecia/ Entre eu e ele, você sabe que eu te amo mais", Gaye transita entre a acusação e a defesa, mas logo exclama: "Me pegou de surpresa, eu tenho que admitir/ Quando eu descobri ontem/ Você não sabe o que eu ouvi ontem, entre as parreiras/ Que você deixaria de ser minha/ É, eu ouvi lá entre as parreiras/ E eu estou quase perdendo a cabeça". Enquanto Gaye quase perde a voz em desespero, os backing vocals dos The Andantes sussuram o refrão, como num cochicho, numa fofoca.

"Sei que um homem não deve chorar/ Mas essas lágrimas eu nao consigo guardar/ Te perder acabaria com a minha vida/ Porque você significa muito para mim" - mantém a aura romântica típica da gravadora - ataca: "As pessoas dizem: acredite apenas em metade do que você vê/ E em quase nada do que ouve/ Mas estou um tanto confuso/ Então me conte, querida/ Você planeja me deixar/ E ir com o cara que você conheceu antes?". E tudo termina em dúvida, tanto para o cantor quanto para o ouvinte: não sabemos a resposta, nunca saberemos. Estamos frente ao Dom Casmurro da música pop.

Além de, claro, constituir um quase-hino contra a fofoca, "Grapevine" se assenta em outras questões. Duas metáforas bíblicas podem ser contrapostas: enquanto a videira é utilizada como metáfora por Cristo durante a Ùltima Ceia (em João 15, por exemplo), as prórpias folhas da parreira foram usadas por Adão e Eva para cobrirem as suas vergonhas - aquelas que se tornam "vergonha" após a Queda, perpetrada pela Serpente - aquela mesmo que abre a canção, no som da meia-lua. Aqui "Grapevine" faz uma reverência oa gospel do qual o soul nasceu, e ao qual este sempre voltará, saja com os Staple Singers, seja com os Racionais MCs.

"Grapevine" também tornou-se símbolo do timbre do piano Wurlitzer, que opera o irff principal da canção. Ao manter os arroubos sinfônicos da Motown, Whitfield trabalhou para dinamizar os arranjos, revestindo as cordas de groove e fazendo-as trabalhar em conjunto com a cozinha - dessa forma, antecipando o caminho tomado não apenas por Marvin Gaye, mas também por outros cânones da música negra americana, como Curtis Mayfield e Isaac Hayes. Tal conceito, que alia groove e instrumentos sinfônicos, será responsável tanto pelas históricas trilhas dos filmes blaxpliotation, quanto por uma série de formatos que mais tarde desembocarão num padrão para a disco music do final dos anos 70.

O groove que permeia "Grapevine" vai fundo nas suas raízes negras. Diferente do requebrado balanço soul da Stax, e longe da dancinha comportada e limpinha da Motown, Whitfield buscou criar uma estrutura que induzisse mais ao transe que ao rebolado. O padrão hipnótico do riff, repetido em diferentes alturas e timbres - piano, guitarra e baixo, é coroado pela percussão africana, no sentido mais radical do termo: foge da amálgama do "afro-americano", desce ao subconsciente réptil da pulsação cardíaca, e volta como vudu, macumba, o próprio coração das trevas. Antes que Sly Stone e George Clinton transformassem a música negra num parque-de-diversões psicodélico (juntamente com o próprio Whitfield, que produzindo os Temptations criou odes à doideira como "Cloud Nine"), Whitfield colocou Marvin Gaye na árvore genealógica que vai de Fela Kuti a Afrikaa Bambattaa (e do ponto de umbanda ao funk carioca) - onde ritmo e transe negros servem ao objetivo máximo: a dança.

Um comentário:

Anônimo disse...
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