19.4.06

Time Is On My Side

No ano passado a teoria da relatividade restrita fez 100 anos. Além de servir de base para a Relatividade Geral e ajudar muito no desenvolvimento da Física Quântica, a teoria da relatividade acabou trazendo uma série de consequências que ultrapassaram o campo da física. Reza a lenda (provevelmente exagerada) de que 75% da economia mundial hoje gira em torno de invenções que só puderam ser desenvolvidas a partir da relatividade. Ao mesmo tempo, surgiram conceitos "não-científicos" baseados na teoria ("Tudo é relativo" deve ser o que te veio à cabeça, né? Pelo menos, sempre vem à minha).

Uma das sacadas da teoria da relatividade é colocar o tempo no campo da geometria, mostrar que movimento é relativo não apenas na esfera do espaço, mas também dentro do espectro temporal. Na verdade, são partes de um mesmo sistema (aliás, Kant classificava tempo e espaço como instâncias de percepção). Ou seja, se o bidimenssional plano cartesiano foi ampliado para um espaço tridimenssional, com a relatividade temos que contar o tempo como uma quarta dimensão para podermos representar fielmente um determinado objeto. Aliás, colocando dessa maneira, não tratamos mais de objetos, e sim de eventos. Assim, a idéia transmuta-se de um tempo linear, sempre avançando, para um tempo especial. Nada deixa de existir, apenas passa a existir em diferentes coordenadas de tempo. Tal observação pode parecer simples e óbvia, mas foi crucial no desenvolvimento da física moderna, quando Einstein constatou que, em altas velocidades, não apenas o movimento espacial, mas também o movimento temporal, é relativo. E é exatamente essa observação usada por Kurt Vonnegut para criar os trafamaldorianos, os extraterrestres que enxergam em quatro dimensões do romance Matadouro Número 5.

"Notei isso outra noite, quando o Rabbit estava lendo um anúncio. Não importa quem esteja falando, os espectros de potência são os mesmos, com apenas uma pequena diferença percentual para mais ou para menos. Por isso, você e o Rabitt agora têm algo em comum. Mais do que isso. Todos que pronunciam as mesmas palavras são a mesma pessoa se os espectros são iguais e simplesmente ocorrem em momentos diferentes, você entende? Mas o tempo é arbitrário. Você pode fixar o ponto zero onde quiser, e então dá para mover para o lado a linha temporal de cada pessoa até que todas coincidam. Aí você tem um coro enorme, sei lá, duzentos milhões de pessoas dizendo juntas 'um rico sabor de chocolate', e tudo seria a mesma voz." DJ Mucho Maas, em O Leilão do Lote 49, de Thomas Pynchon.

A música, enquanto fenômeno acústico (ondas sonoras ordenadas em certas alturas, timbres e pulsos), até pouco tempo, só poderia existir durante a execução de uma determinada peça. Ou seja, o fenômeno música se dava exclusivamente ao vivo, era efêmero e precioso. A forma escrita, uma das poucas maneiras de se registrar uma música, era limitada em relação a aspectos impostantes da experiência musical, como o timbre. Portanto, para ouvir música de verdade, as pessoas deveriam, ou aprender um instrumento, ou procurar alguém que pudesse tocá-lo.

A possibilidade da gravação arrancou a música do casulo temporal em que ela se encontrava. Uma determinada execução de uma peça poderia ser repetida, com precisa fidelidade, ao infinito (ou enquanto durasse o material onde tal peça estivesse impressa - ailás, imprimir é bem o termo, se formos pensar nas formas de gravação e reprodução utilizadas até a era do vinil). Portanto, hoje podemos ouvir a voz de pessoas mortas como se elas cantassem aos nossos ouvidos. Tal possibilidade, ao mesmo tempo que reduziu (aparentemente) a importância da execução ao vivo - e forçou novas maneiras de se pensar essa execução - também produziu formas de música que não poderiam existir sem tais tecnologias. Por um lado, a vanguarda eletro-acústica aproveitou a "crise das alturas" (aqui estou citando o Wisnik) para propor novas formas de se entender o som, trabalhando especialmente com a matéria gravada em si. E por outro lado, artistas populares que já haviam nascido após esse período de transição começaram a enxergar o produto gravado como único. Durante meio século, os discos de música popular eram a versão gravada da performance no palco, meras reproduções pálidas de artistas que podiam ser magnéticos, incendiários, intimistas - características que muitas vezes se perdiam no processo de gravação. Ao mesmo tempo que perdiam o frescor dos palcos, as músicas impressas nos sulcos dos vinis ainda não tinham descoberto as possibilidades de trabalhar com algo essencialmente gravado.

Na música popular a mudança se deu a partir dos anos 60. Se numa ilha os Beatles foram os pontas-de-lança desse racioncínio, lançando discos totalmente baseados em experimentações que iam da manipulação de timbres artificiais a fitas rodadas ao contrário, em outra ilha King Tubby inventava o dub e legitimava o estúdio como instrumento musical. Esses dois pontos focais vão se entremear durante o futuro nesse melting pot que é a música pop (cuja fronteira máxima - os 3 minutos da canção - já foi derrubada há tempos), criando uma lógica de gravação que evolui a partir do método de multi-pistas desenvolvido por Les Paul.

A partir do desenvolvimento da gravação digital, novas lógicas começaram a ser desenvolvidas. Agora a música pode ser transformada informação pura, 1s e 0s lidos via processadores, e a sua cópia não denota mais perda de qualidade - o princípio básico da pirataria moderna, tanto a do camelô quando a do P2P. A computação também nos deu interfaces gráficas com a qual podemos lidar com essas músicas. Programas como Audacity, Cubase e Logic Pro (ou mesmo mais simples, como Adobe Audition e Samplitude) compartilham de uma interface inovadora - a timeline.

Essa linha do tempo é uma modificação crucial na forma de se fazer música. Se anteriormente a mixagem era cega - baseada em pontos de cue, marcações temporais numa gravação - agora nós podemos ver representações visuais de cada trecho de gravação que sera adicionado na mixagem final. Ou seja, como antes enxergávamos pontos, retas, formas dentro de um plano cartesiano de espaço, agora temos uma representação visual da música num plano que apresenta na horizontal o tempo, e na vertical os diferentes canais que se mixam. Os canais são preenchidos por trechos de som - sejam eles guitarras, baterias, samples, vocais, batidas de automóveis - repesentados por blocos de extensão proporcinal a duração do trecho. Tais blocos podem ser copiados, movidos, distorcidos separadamente.Tal modelo de mixagem transforma o ato de construir a canção numa brincadeira de blocos Lego, uma sucessão de quadrados de Mondrian semelhante àqueles exercícios dados aos diagramadores iniciantes. Além de oficializar a mixagem como peça lúdica, dando ao leigo a oportunidade de produzir música sem saber instrumento algum, esse arranjo geométrico mostrou a cara da música gravada e a sua relação como tempo.

Comigo isso aconteceu quase como revelação. Esse negócio de tempo como quarta dimensão não tem como ser entendido no plano da realidade consensual, precisa de uma simulação. E as trilhas, sejam de áudio ou de vídeo, são um exemplo perfeito para tanto. A principal diferença entre a edição não-lienear e a edição linear é qu, na primeira, os elementos que compões o mix final não ficam presos nas suas posições. Você pode determinar precisamente em que momento da mixagem final o trecho selecionado vai aparecer, pode repetí-lo ad infinitum, pode deslocá-lo temporalmente dentro de uma realidade simulada para que possa se ajustar às suas intenções. Enquanto a edição linear precisa de um planejamento prévio, um roteiro amarrado com todo cuidado para que as coisas funcionem perfeitamente, a sua versão não-linear permite a livre experimentação, podendo gerar alternativas que passariam batidas no método mais ortodoxo. Essa flexibilidade é permitida exatamente pela "montagem". Enquanto os elementos na edição linear vão sendo adicionados dentro de uma linha temporal, na seqüência exata em que devem aparecer, o deslizamento temporal da edição não linear permite que a ordem seja livre.

Essa mudança na lógica de composição faz parte da mudança na percepção temporal proporcionada pelas novas tecnologias. O relógio, rígido, industrial, feito para vigiar, para fazer valer o trabalho realizado pelo operário, criado para bater o ponto, é substituído pelo tempo digital, virtual, flexível. O tempo deixa de ser o tempo do trabalho e passa a ser o tempo da informação. Livre, diluí-se indefinidamente: desde adolescentes nostálgicos por aquilo que não viveram até septuagenários obcecados com qualquer novidade - seja de vestuário, tecnológica ou ideológica. O tempo é preguiçoso ou frenético, plácido ou reto. O ritmo é você quem determina: e no auge da música portátil e sem fronteiras, o tempo escorre pra dentro dos seus ouvidos.

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