5.6.06

De volta para o futuro I: Blood On The Tracks

Ultimamente eu estou meio sem tempo, mas com muitas idéias. Então eu vou postar um texto "antigo" meu, (vá lá, tem só três anos) que estava perdido no limbo. Acho que vai dar pra enxergar a imaturidade daquele Amauri com tranquilidade - que ainda não é maduro, mas está menos pior que na época.



The Blood On The Tracks Only Must Be Mine

Eu sei que isso aqui não é a Discoteca Básica pra ficar falando de disco velho, mas a questão é mais abrangente. Nunca li nada em português sobre o Blood On The Tracks, um dos melhores discos do Bob Dylan, e resolvi escrever eu mesmo. a primeira vez que eu li alguma coisa sobre esse disco foi no CD Now, na época em que era um site visitável, com matérias boas e tudo (descobri Son Volt lá, por exemplo), e eles consideravam o Blood On The TRacks o melhor álbum do Dylan. Tive que baixar pra crer. Dylan que perdoe minha falta de fé, e aqui eu me resigno.

Blood On The Tracks, situado entre o "artístico" Planet Waves (com a Band) e o sereno Desire, foi escrito logo depois de Robert Allen Zemmerman ter levado um homérico pé-na-bunda da sua esposa, Sara Lowndes, e isso é o tema central de todo o disco, apesar dele não contar com um "conceito" de verdade. Musicalmente falando, o disco é conservador, canções muito boas mas deferentes da subversão de "Subterrean Homesick Blues", por exemplo. Já na primeira faixa dá pra perceber o tom tristonho do álbum: "Tangled Up In Blue", que conta a história de um casal que se encontra e se separa, conforme as necessidades da estrada. Um belo trabalho de violões faz a base para Dylan recitar seus versos ambíguos. Por mais que eu fale sobre essa canção, nada vai ser parecido com isso. Portanto, passemos à próxima.

"Simple Twist Of Fate" é uma balada simples, com alguns fraseados de baixo se destacando aqui e ali. A voz de Dylan é delicada, lembra do momento do rompimento de um casal com versos sheakesperianos até. Começa descrevendo a cena como num filme, o último encontro, cada um para o seu lado, a manhã seguinte. O homem se vê negando o amor ou a saudade que sentiria da mulher, naquele medo mortal que todos os homens sempre sentem em relação às garotas: "Ele acordou, o quarto estava vazio/ Ele não a viu em lugar algum, abriu bem a janela/ Sentiu um vazio por dentro, o qual ele simplesmente não conseguiria descrever/ Trazido por um simples capricho do destino". Dylan usa a terceira pessoa durante toda a música, apenas para no final confessar: "Ainda acredito que ela era minha gêmea/ Mas eu perdi o anel/ Ela nasceu na primavera/ Mas eu nasci tarde demais/ Culpe um simples capricho do destino".

"You Are A Big Girl Now" começa com bateria e piano evocando um clima de balada soul, a caixa e o chimbau dialogando, enquanto os violões floreiam. Dylan se mostra pesaroso, porém entende as circunstâncias, ao que parece. Faça o que quiser agora que você está livre, parece dizer. "Eu estou na chuva/ E você está em terra seca/ De algum modo você chegou aí/ Você é uma garota crescida agora." Saber que ela vai se virar não alivia a dor, e Dylan aparece a cada momento mais triste e perdido; "Um pássaro no horizonte, sentado na cerca/ ele canta sua canção para mim ao seu próprio custo/ e eu sou como aquele pássarro, oh/ Cantando apenas para você/ Espero que você consiga me ouvir/ Cantando entre essas lágrimas." Promete mudar, acha que as coisas vão voltar a ser como antes, mas então percebe: "O amor é simples, para citar uma frase/ Você sempre soube, eu estou aprendendo agora/ Eu sei onde te achar/ No quarto de alguém/ É o preço que se deve pagar/ Você é uma garota crescida de qualquer jeito." Dylan não nos faz sentir pena dele, mas solidariedade, nos faz compartilhar o seu pesar e tentar no solo de gaita, no final, exorcizar alguns dos fantasmas que nos assola.

Por sua vez, "Idiot Wind" é como Songs For An American Movie Part 2, do Everclear: agora que tudo terminou, você vai ouvir. Novamente Dylan começa com uma parábola, mas em segunda pessoa, falando diretamente com a mulher que o rejeitou: "Vento idiota, soprando cada vez que você move os dentes/ Você é idiota, querida/ É um milagre que ainda saiba respirar." Nesse momento Dylan fica na tentação de se colocar como a vítima irredutível da história "Eu não consigo mais sentir você, eu não consigo mais nem tocar nos livros que você leu/ Toda vez que eu rastejo pela sua porta eu queria ser outra pessoa." Não estamos lidando com "silly love songs", nenhuma música desse disco fala de amores utópicos, e até mesmo uma canção raivosa termina com uma consciência tremenda: "Somos idiotas, querida/ É maravilhoso como ainda podemos nos alimentar." Não é o outro o único culpado. Somos todos. Uma outra interpretação pra essa canção, bem apropriada, pode ser achada aqui, em português e num site politicamente conservador...

"You´re Gonna Make Me Lonesome When You Go" retorna às raizes folk de Dylan, com violões, baixo e uma gaita no final apenas. O bardo canta o quão bom é o seu amor, e teme, avisa: "Você vai me fazer solitário quando for embora." cita poesia novamente (já havia falado de "um poeta italiano do século 13" em "Tangled Up In Blue"), evocando o caso turbulento do Paul Verlaine e Arthur Rimbaud: "Situações acabaram tristemente/ Relacionamentos sempre foram ruins/ O meu tem sido como o de Verlaine e Rimbaud." O Tom de voz é de alegria contida, conformado com os destinos determinados pelos deuses, Dylan se conforma com o seu fim.

Evocando os blues pré-eletricidade (apesar da guitarra), "Meet Me In The Morning" aparece com seus slides e sua estrutura simples. Dylan encarna o negro do Mississipi e escreve a letra como um Robert Johnson letrado: "Dizem que a hora mais negra/ É logo antes da alvorada/ Mas você não ouviria isso de mim/ Todo dia tem sido negro desde que você partiu." Novamente, ele está conformado. É o blues da vida, baby, eu não vou ter o seu amor pra sempre, e assim segue na sua tortuosa estrada, pelas leis que não estão escritas.

Por sua vez a gaitinha do começo de "Lily, Rosemary and The Jack Of Hearts" soa como "venha cá, chegue mais que eu tenho uma história para te contar". Mais tarde Dylan também fez uma canção longa contando outra história, a famosa "Hurricane". "Lily, Rosemary and the Jack Of Hearts" inspirou também "Faroeste Caboclo" de Renato Russo, só que, ao invés de contar toda uma vida e se propor a ser uma denúncia social, a música de Dylan parece mais o roteiro de um filme de bangue-bangue sem nenhum tiroteio. Nos primeiros versos, animado por um órgão esperto e um country acelerado (não chega a ser um hillbilly, creio) que vão até o fim, Dylan apresenta sua cidadezinha e o roubo que estava sendo planejado. Cada personagem que aparece ao longo da narrativa é apresentado em um verso em separado: O misterioso e fodão (Wolverine, saca?) Valete de Copas; Lily, sua paixão; Big Jim, dono da mina de diamante e filha da puta mor da vila e por fim sua esposa Rosemary, que não agüenta mais as traições do marido. Ao mesmo tempo o juiz, que veio para a cidade para um enforcamento está enchendo a cara no saloon onde a história se passa. De repente a bagunça se instaura: Big Jim tenta matar o Valete mas é assassinado por Rosemary enquanto os companheiros do Valete fogem com todo o dinheiro do banco. No fim, Rosemary é enforcada, Lily termina sozinha e o Jack Of Hearts já está em algum canto no velho Oeste. Nada demais, apenas uma história de amor e perda para relaxar um disco tão pesado.

Até porque a canção seguinte é a desesperadamente sóbria "If You See Her, Say Hello". O que importa é a voz de Dylan, clara e potente como poucas vezes foi ouvida. Ele se esforça em cada verso, procura quebrar a barreira e ser o mais sincero e humilde o quanto puder. Como o dono de um ponto de para no meio da estrada ele fala com um amigo em viagem, ou um desconhecido, não importa, ele precisa falar com alguém: "Se você a ver, diga olá, ela deve estar em Tangier/ Ela se foi daqui na primavera passada, está por lá, eu soube/ Diga por mim que estou bem, apesar das coisas estarem meio paradas/ Ela deve estar pensando que eu a esqueci, não diga que não é verdade." Dylan se vê carregando seu amor de altruísmo, "O que fizer ela feliz, eu não vou me meter", mas não consegue agüentar a saudade. Algo me diz que ele chorou pacas, como só os machões fazem, sozinhos, enquanto compunha cada verso, todos simples, desse apelo: por favor, que sabe tomar só um café, mas não me deixe tão miserável. O estrago da separação aos poucos é sentido: "Eu vejo muita gente enquanto eu viajo/ E eu ouço o nome dela aqui e ali, enquanto vou de cidade em cidade/ Mas eu nunca fui disso, aprendi a desligar/ Mas acho que sou muito sensível, ou estou ficando macio." Respeito e um coração quebrado, isso é tudo que sobrou para Dylan oferecer para a sua amada.

"Shelter From The Storm" nasce para reconhecer todo o valor da ex-esposa: "Eu estava queimado de exaustão, enterrado até o pescoço/ Envenenado nas moitas, desviado do meu caminho/ Caçado como um crocodilo e perdido no milharal." O momento que ela aparece na vida do poeta está tatuado na memória dele:"De repente eu me virei e ela estava lá/ Com braceletes prateados nos pulsos e flores na cabeça/ Ela veio graciosamente e tirou minha coroa de espinhos/ 'Entre', ela disse/ 'eu vou te abrigar da tempestade.'". A coroa de espinhos não é a única referência cristã: "Numa pequena colina de uma vila eles jogaram pelas minhas roupas/ Eu negociei por salvação e eles me deram uma dose letal/ Eu ofereci a minha inocência e recebi escárnio." Dylan é o Cristo de si mesmo, mas a salvação está nas mãos dela. Agora, depois de tudo errado, desculpa-se e reitera a sua promessa de fazer sempre o melhor por ela. "Shelter From The Storm" é um obrigado e uma obrigação, a de manter boas lembranças. O folk, todo levado no violão, termina com uma gaita característica, como a maior parte das canções do disco.

Fechando o disco está a singela "Buckets Of Rain", também só no violão, mais floreado que na faixa anterior, é o epílogo perfeito para a saga de Blood On The Tracks, que deve ter consumido muito de Dylan. "Baldes de chuva/ Baldes de lágrimas/ Tenho todos esse baldes vindos das minhas orelhas/ Baldes de raios da lua nas minhas mãos/ Você tem todo o amor, doce querida/ Que eu posso agüentar." Dylan resume tudo e despede-se, com a consciência tranqüila e alguns demônios exorcizados: "A vida é triste/ A vida é uma mentira/ Tudo que você pode fazer/ É fazer o que você tem que fazer/ Faça o que deve, e faça bem/ Eu farei isso por você, doce querida/ Pode me dizer?"

Blood On The Tracks termina assim, no silêncio e na dúvida. É o maior disco de pé-na-bunda que eu conheço, e sua audição não deve ser recomendada para aqueles que não vão tão bem em seus relacionamentos. Ou não, vai que nego se toca do que aconteceu com o Dylan e resolve se aprumar. Não sei, só sei que todo o conjunto é de uma sensibilidade ímpar, a obra-prima de Bob Dylan, mesmo que seja de uma influência menor nos seus discípulos. É assim que deveria ser, Blood On The Tracks é uma experiência solitária como atravessar o rio Estige: você pode estar acompanhado de Caronte e outras almas da mesma sorte que você, mas nunca você vai está tão só.

Um comentário:

Anônimo disse...

muito boa resenha, cara, meus parabéns.
puta disco forte e triste.