28.6.06

I bet you´re wondering how I knew...

De repente, sozinha, uma caixa, um toque seco. Então o piano elétrico Wurlitzer começa a tocar aquele riff conhecido. Uma meia-lua começa a tremer, como se fosse o som de uma cascavel pronta para dar o bote. A bateria vem marcial, a guitarra começa a aconpanhar o piano e entram as cordas subindo, juntamente com a familiar voz, uivando um lamúrio.

"I Heard It Trough The Grapevine" é uma composição de Norman Whitfield, com letra de Barrett Strong. Letrista da Motown, Strong também escreveu, em parceira com Whitfield, outros clássicos, como "War", de Edwin Starr e "Papa Was A Rollin´Stone", dos Temptations, além de ser o cantor do primeiro grande hit da gravadora, "Money" (é, aquela dos Beatles). Whitfield também era produtor, especialmente dos Temptations - banda que mais tarde seria conduzida por ele para o soul psicodélico.

Whitfield, consciente da qualidade da música em questão ("I Heard It...") , gravou-a inicialmente com dois grupos: Smokey Robinson And The Miracles e The Isley Brothers, ambas rejeitadas pelo "controle de qualidade" que a Motown mantinha. A canção só foi fazer sucesso com Gladys Knght & The Pips - que virou o single mais vendido da gravadora. Porém, antes dessa versão, Whitfield havia gravado a cançaõ da forma que ela entraria para a história, com Marvin Gaye, ainda em 67. A versão de Gaye, infelizmente, foi rejeitada por Barry Gordy, chefão da gravadora. Um ano depois, quando estava-se decidindo as faixas que entrariam no álbum "In The Groove", Whitfield deu um jeito de encaixar "Grapevine" na lista final. Apesar do compacto oficial do disco ser "You", logo os DJs de todas as rádios estavam tocando "Grapevine". Quando lançada finalmente em single, a canção ultrapassou as vendas totais da versão de Gladys Knight, tornando-se o compacto mais vendido da gravadora (até que "I´ll Be There", dos Jackson 5 a desbancasse do posto).

Ouvindo hoje, dá pra saber porque Gordy vetou a versão de Marvin Gaye. "Grapevine" foi um marco na história da gravadora, representando o momento onde as canções açucaradas, tanto na forma quanto no conteúdo, dão lugar a composições mais sérias. Na própria carreira de Gaye, representa uma virada: depois do colapso que sua parceira na Motown, Tammi Terrel, sofreu em cima do palco, Gaye acabou enveredando por caminhos mais "adultos", que resultariam no álbum "Wht´s Going On", lançado em 71.

A letra de "Grapevine" trata de fofocas e um relacionamento que parece chegar ao fim. Gaye foi instruído por Whitfield a manter seu vocal um pouco acima do seu registro natural durante toda a canção - assim criando na voz o efeito cru e desesperado que mais tarde se tornaria marca registrada do cantor. "Aposto que você imagina como eu soube/ Dos seus planos de me fazer triste/ Com um outro cara que você já conhecia/ Entre eu e ele, você sabe que eu te amo mais", Gaye transita entre a acusação e a defesa, mas logo exclama: "Me pegou de surpresa, eu tenho que admitir/ Quando eu descobri ontem/ Você não sabe o que eu ouvi ontem, entre as parreiras/ Que você deixaria de ser minha/ É, eu ouvi lá entre as parreiras/ E eu estou quase perdendo a cabeça". Enquanto Gaye quase perde a voz em desespero, os backing vocals dos The Andantes sussuram o refrão, como num cochicho, numa fofoca.

"Sei que um homem não deve chorar/ Mas essas lágrimas eu nao consigo guardar/ Te perder acabaria com a minha vida/ Porque você significa muito para mim" - mantém a aura romântica típica da gravadora - ataca: "As pessoas dizem: acredite apenas em metade do que você vê/ E em quase nada do que ouve/ Mas estou um tanto confuso/ Então me conte, querida/ Você planeja me deixar/ E ir com o cara que você conheceu antes?". E tudo termina em dúvida, tanto para o cantor quanto para o ouvinte: não sabemos a resposta, nunca saberemos. Estamos frente ao Dom Casmurro da música pop.

Além de, claro, constituir um quase-hino contra a fofoca, "Grapevine" se assenta em outras questões. Duas metáforas bíblicas podem ser contrapostas: enquanto a videira é utilizada como metáfora por Cristo durante a Ùltima Ceia (em João 15, por exemplo), as prórpias folhas da parreira foram usadas por Adão e Eva para cobrirem as suas vergonhas - aquelas que se tornam "vergonha" após a Queda, perpetrada pela Serpente - aquela mesmo que abre a canção, no som da meia-lua. Aqui "Grapevine" faz uma reverência oa gospel do qual o soul nasceu, e ao qual este sempre voltará, saja com os Staple Singers, seja com os Racionais MCs.

"Grapevine" também tornou-se símbolo do timbre do piano Wurlitzer, que opera o irff principal da canção. Ao manter os arroubos sinfônicos da Motown, Whitfield trabalhou para dinamizar os arranjos, revestindo as cordas de groove e fazendo-as trabalhar em conjunto com a cozinha - dessa forma, antecipando o caminho tomado não apenas por Marvin Gaye, mas também por outros cânones da música negra americana, como Curtis Mayfield e Isaac Hayes. Tal conceito, que alia groove e instrumentos sinfônicos, será responsável tanto pelas históricas trilhas dos filmes blaxpliotation, quanto por uma série de formatos que mais tarde desembocarão num padrão para a disco music do final dos anos 70.

O groove que permeia "Grapevine" vai fundo nas suas raízes negras. Diferente do requebrado balanço soul da Stax, e longe da dancinha comportada e limpinha da Motown, Whitfield buscou criar uma estrutura que induzisse mais ao transe que ao rebolado. O padrão hipnótico do riff, repetido em diferentes alturas e timbres - piano, guitarra e baixo, é coroado pela percussão africana, no sentido mais radical do termo: foge da amálgama do "afro-americano", desce ao subconsciente réptil da pulsação cardíaca, e volta como vudu, macumba, o próprio coração das trevas. Antes que Sly Stone e George Clinton transformassem a música negra num parque-de-diversões psicodélico (juntamente com o próprio Whitfield, que produzindo os Temptations criou odes à doideira como "Cloud Nine"), Whitfield colocou Marvin Gaye na árvore genealógica que vai de Fela Kuti a Afrikaa Bambattaa (e do ponto de umbanda ao funk carioca) - onde ritmo e transe negros servem ao objetivo máximo: a dança.

27.6.06

Reedições II - Rock Ritual

O Ronaldo elogiou, o Gazzoni falou de coisas correlatas, saiu uma matéria na Folha corroborando, e eu tava a fim de reeditar. Bem pretensioso, espero que não soe muito besta um ano depois...

Live Dead

A maneira talvez mais primitiva que a música se manifesta na história humana é na condição ritual, como suporte para a celebração social de uma espiritualidade compartilhada por um determinado grupo social. Antes dos adjetivos estéticos, racionalizações de uma visão antes mística, a música devia-se ao transe, ao convívio social além do cotidiano. Aliás, a música passa a ser especialmente cotidiana a partir do momento em que a gravação e o rádio entram em cena. Essa condição primal de ritual social, culto, manteve-se até os dias de hoje, sem perspectiva de sumir. Os rituais obviamente mudam em cada sociedade, com isso também muda a música. A música tradicional japonesa baseia-se num código rígido de ritual, do que pode ou deve ser tocado ou não, onde e quando, enquanto a música africana baseia-se num ritmo mais livre, voltado aos movimentos corporais. Refletindo e também moldando o temperamento social, a música segue em contato com o espírito, mesmo nos nossos tempos laicos.

Depois da morte de Deus, as mitologias que guiam e explicam como o indivíduo deve portar-se diante da sociedade foram obrigadas a mudar de escopo. Sem a religião como norte, desenvolveram-se outras formas de se interpretar e conferir sentido à vida. Enquanto a música erudita transcendeu o estado modal em direção as experimentações do minimalismo (para explicações, melhor ler “O Som e o Sentido” do Zé Miguel Wisnik), a música popular seguiu em mutação em direção ao pop propriamente dito. O rock é um exemplo bem acabado de mitologia moderna. Ali existem mitos fundadores (Elvis, Chuck Berry), mitos transformadores (Beatles, Sex Pistols), mitos com a função de manter um status quo dentro do conjunto do estilo (desde “American Pie” até aqueles artistas que lançam sempre o mesmo disco, como o AC/DC). Como a maior parte das religiões, o rock também tem a sua forma de culto, que desde o começo do estilo está presente: o show.

Se no começo os shows de rock diferenciavam-se de qualquer outro show apenas pela crueza africana (herdada diretamente do R&B), com o tempo e as bifurcações tomadas pelos xamãs, sacerdotes ou simplesmente músicos, começaram a aparecer códigos específicos de conduta dentro dos rituais de cada tribo que aparecia. Existem artistas cujos shows têm códigos especialmente próprios, como o Grateful Dead: horas em cima do palco, a liberação da pirataria, o público com comportamento específico, buscando o transe e a comunhão, as drogas certas, sempre tocando uma versão longuíssima de “Dark Star” – uma celebração especial por si mesma, atentando para o fato que até pouco tempo não existia uma versão oficial de estúdio para essa música. Da mesma forma o Kiss se inventou enquanto banda de performance, com um código de vestimenta imitado pelos fãs, atuações ensaiadas e sempre repetidas, como o Gene Simons vomitando sangue, cenografia impecável. Um devoto que vai a um show dessas duas bandas sabe exatamente o que acontecerá, assim como os católicos praticantes sabem a hora em deve-se levantar ou sentar durante uma missa.

Um componente normalmente presente em muitos rituais são os psicotrópicos, maneiras de atingir realidades diferentes que sempre estiveram associadas aos planos espirituais. No rock, saem o peiote, o ópio e o vinho e entram a cerveja, a maconha, a cocaína, o LSD e todo um panteão de químicas artificiais. Porém novamente os códigos sociais, além do mood causado por cada substância, vão estabelecer momentos específicos para cada droga. Maconha no reggae, LSD para os hippies, aguardente com refrigerante para os punks, cocaína e ketamina para os fãs de Placebo, cerveja para todos. Não que essas fronteiras sejam muito rígidas, mas pelo menos delimitam um campo de maioria para o uso de uma ou outra substância.

Todo show é um ritual, e as subculturas do rock vão criando maneiras específicas de se comportar dentro de cada uma dessas missas. Os indies são apáticos, os punks abrem uma roda de pogo, os headbangers batem a cabeça com o braço erguido em lml. A quebra desse padrão gera estranheza, pular num show do Hurtmold pode soar tão anormal quanto querer erguer as pernas como se fosse um reggae numa apresentação do Napalm Death ou girar os quadris ao som do Garage Fuzz. Tais normas de movimentação corporal são regidas ao mesmo tempo pelo pulso da música apresentada e pelos códigos de estilo de cada subcultura, assim como todas as outras relações que os membros de cada subcultura têm com o corpo (indumentária, cabelo, modificações corporais).

O espaço também vai mudar a maneira como o ritual se dá. O já citado Kiss funciona melhor num grande estádio, enquanto o Grenade faz mais sentido “tocando no chão, para 200 pessoas, com a fumaça do cigarro dos outros batendo na cara”. Casas muito grandes para um público limitado e uma banda menos conhecida minam a comunicação, assim como um teatro,.mesmo pequeno, não serve para um show punk. A relação de proxêmica muda os humores: um público espalhado soa melhor para o mini-Woodstock que é o show de um Grateful Dead, assim como um palco baixo de um clube pequeno vai ser mais eficaz para um Cherry Bomb. Os outros elementos que determinam um bom show seguem da mesma maneira: o horário em que começa ou acaba, volume e qualidade da aparelhagem de som, excesso ou falta de iluminação.

Porém o ritual quase sempre se completa – exceto quando interrompido pela polícia ou outro acontecimento esotérico do mesmo naipe. Afinal é um dos componentes mais fortes dessa religião roqueira, em cima do qual inúmeras narrativas são erguidas. Os discos são a liturgia, cantar uma música sozinho como um retardado é a oração, porém nada vai estar mais perto da transcendentalidade que um show. Nos tempos da telepresença, do individualismo da música eletrônica, da entrega a domicílio, a comunhão pública e compartilhada começa a encher-se de significação e necessidade. O rito do show de rock dá ao sujeito uma noção de participação e pertencimento a algo maior que a soma das partes. As vozes em uníssono, o transe coletivo da dança, isso tudo dá ao rock um sentido final, agora que a revolução (estética ou social) não está mais na sua mão.

6.6.06

É tudo free - as verdadeiras lojinhas vituais

Depois que o Matias escreveu sobre os blogs de mp3, fiquei com preguiça de colocar esse texto aqui no ar. Mas como eu descobri que outro texto meu (sobre o Betty By Alone) foi ao ar no excelente Lágrima Psicodélica, resolvi publicar de vez essa porcaria...

E então se fez o MP3. Tá, convenhamos, o MP3 não é um formato de áudio, e sim um padrão de compressão, cria do alemão Karlheinz Brandenburg e sua equipe, baseados em outros formatos de compressão (o MP1 e MP2) . A história mais completa do MP3 você encontra aqui. Se dependesse da indústria fonográfica, esse tipo de arquivo ainda estaria circulando apenas nos porões nerds das BBS´s afora.

Apesar de soar estranho hoje, o MP3 era, inicilmente, muito grande. Apesar dos 128 Kbps parecerem pouca coisa, vale lembrar que há uns dez anos, um HD de 1 Gb não era muito comum. Além disso, a internet, seara onde o MP3 popularizou-se, também era lenta, com suas conexões discadas e outros quetais.

Em 1999 a Rede já começava seu processo de estabilização, popularização e aceleração, enquanto o tamanho dos HDs (assim como a RAM) inchava. Foi nesse ano que surgiu o Napster, primeiro programa P2P, onde os usuários trocavam seus arquivos. Mesmo naquela época as coisas eram mais lentas: músicas que demoravam horas para serem baixadas, ripar um CD para o computador exegia a mesma paciência, e ninguém possuía muita coisa nas pastas de arquivos (ainda todas desorganizadas)

O Napster acabou, mas enquanto a largura de banda crescia, substitutos iam aparecendo. O primeiro fenômeno do combo P2P + MP3 foi a revitalização do single: afinal, quem estava afim de pagar por um álbum inteiro quando queria apenas uma canção? A pasta de arquivos em MP3 de cada pessoa era um grande shuffle, uma sequência embaralhada de músicas diversas.
Depois, foi a vez do álbum entrar para a era on-line. E dá-lhe pastas e mais sub-pastas divididas em artistas e álbuns, dá-lhe digitar um nome que você quisesse, em qualquer programa, e achar 300 mil arquivos e usuários diferentes com aquele disco, aritsta ou música. A internet é o sonho do aficcionado por música, onde toda a música gravada na história parece estar ao alcance de todos.

Mas, meio que do nada, eu senti um pouquinho de vazio: e o que acontece com aqueles pequenos rituais que a música pop criou na gente. Um que eu realmente sentia mais falta era o da loja de discos: chegar como quem não quer nada, cumprimentar o vendedor (que, invariavelmente, era seu amigo) e sair fulando nas prateleiras. Parece que a precisão cirúrgica do botão "search" eliminou a surpresa, aquela sensação de se deparar com um disco que você sempre quis ouvir mas nunca lembrava de pedir pro vendedor (ou de digitar no campo de pesquisa). Se você é monotemático, tudo bem, sempre vai encontrar o que quer: um bootleg do Dylan, um ao vivo do Venon, uma coletânea de lados B do Daft Punk; ms se você é um fã incondicional de uns 30 estilos diferentes, sempre vai ficar um pouco perdido.

Foi aí que eu descobri os blogs de MP3. Não falo apenas de blogs que colocam uma canção ou outra de seu artista favorito, mas que postam álbuns inteiros via rapidshare. A sensação é muito parecida com entrar numa loja "só pra olhar". Sem pretensão nenhuma, você dá uma olhadinha no que tem por ali. Logo chega o vendedor, explicando a importância de cada álbum postado, o quanto ele é raro, quem ele influenciou. O que antes era apenas uma lista de faixas ganha vida, e o joio é separado do trigo. Claro que esses blogs não são mega-stores, onde você vai achar tudo o que quer. Tem mais a ver com sebos virtuais, cada um especializado na sua seara. Para quem gosta de velharia roqueira, vale uma chegada no Past Tense Music, por exemplo . Em português e inglês, lá dá pra achar de Who a Mutantes, de Cream a Sá Rodrix e Guarabira, tudo contextualizado e bem contadinho. Experimentalismos? Curved-Air. Musica jamaicana dasantiga? Hearwax Trilhas sonoras classudas? Lounge Tracks. Jazz raro? Jazz Heads. Até mesmo as lendárias Peel Sessions do falecido DJ inglês John Peel têm seu cantinho: The Perfumed Garden

A variedade é tão grande que já existem blogs que apenas compilam outros blogs, como o excelente Nau Pyrata. Sem a poeira causadora de rinite dos sebos, a plataforma virtual fica entre uma economia do excesso e um p2p generoso. Pois é, a internet já apresentou sua versão do single, do álbum e agora, da loja de discos, sempre em adaptações espontâneas de formatos industriais. O futuro - nos próximos vinte meses - só podemos imaginar, enquanto aproveitamos cada possibilidade da revoluçaõ tecnológica.

5.6.06

De volta para o futuro I: Blood On The Tracks

Ultimamente eu estou meio sem tempo, mas com muitas idéias. Então eu vou postar um texto "antigo" meu, (vá lá, tem só três anos) que estava perdido no limbo. Acho que vai dar pra enxergar a imaturidade daquele Amauri com tranquilidade - que ainda não é maduro, mas está menos pior que na época.



The Blood On The Tracks Only Must Be Mine

Eu sei que isso aqui não é a Discoteca Básica pra ficar falando de disco velho, mas a questão é mais abrangente. Nunca li nada em português sobre o Blood On The Tracks, um dos melhores discos do Bob Dylan, e resolvi escrever eu mesmo. a primeira vez que eu li alguma coisa sobre esse disco foi no CD Now, na época em que era um site visitável, com matérias boas e tudo (descobri Son Volt lá, por exemplo), e eles consideravam o Blood On The TRacks o melhor álbum do Dylan. Tive que baixar pra crer. Dylan que perdoe minha falta de fé, e aqui eu me resigno.

Blood On The Tracks, situado entre o "artístico" Planet Waves (com a Band) e o sereno Desire, foi escrito logo depois de Robert Allen Zemmerman ter levado um homérico pé-na-bunda da sua esposa, Sara Lowndes, e isso é o tema central de todo o disco, apesar dele não contar com um "conceito" de verdade. Musicalmente falando, o disco é conservador, canções muito boas mas deferentes da subversão de "Subterrean Homesick Blues", por exemplo. Já na primeira faixa dá pra perceber o tom tristonho do álbum: "Tangled Up In Blue", que conta a história de um casal que se encontra e se separa, conforme as necessidades da estrada. Um belo trabalho de violões faz a base para Dylan recitar seus versos ambíguos. Por mais que eu fale sobre essa canção, nada vai ser parecido com isso. Portanto, passemos à próxima.

"Simple Twist Of Fate" é uma balada simples, com alguns fraseados de baixo se destacando aqui e ali. A voz de Dylan é delicada, lembra do momento do rompimento de um casal com versos sheakesperianos até. Começa descrevendo a cena como num filme, o último encontro, cada um para o seu lado, a manhã seguinte. O homem se vê negando o amor ou a saudade que sentiria da mulher, naquele medo mortal que todos os homens sempre sentem em relação às garotas: "Ele acordou, o quarto estava vazio/ Ele não a viu em lugar algum, abriu bem a janela/ Sentiu um vazio por dentro, o qual ele simplesmente não conseguiria descrever/ Trazido por um simples capricho do destino". Dylan usa a terceira pessoa durante toda a música, apenas para no final confessar: "Ainda acredito que ela era minha gêmea/ Mas eu perdi o anel/ Ela nasceu na primavera/ Mas eu nasci tarde demais/ Culpe um simples capricho do destino".

"You Are A Big Girl Now" começa com bateria e piano evocando um clima de balada soul, a caixa e o chimbau dialogando, enquanto os violões floreiam. Dylan se mostra pesaroso, porém entende as circunstâncias, ao que parece. Faça o que quiser agora que você está livre, parece dizer. "Eu estou na chuva/ E você está em terra seca/ De algum modo você chegou aí/ Você é uma garota crescida agora." Saber que ela vai se virar não alivia a dor, e Dylan aparece a cada momento mais triste e perdido; "Um pássaro no horizonte, sentado na cerca/ ele canta sua canção para mim ao seu próprio custo/ e eu sou como aquele pássarro, oh/ Cantando apenas para você/ Espero que você consiga me ouvir/ Cantando entre essas lágrimas." Promete mudar, acha que as coisas vão voltar a ser como antes, mas então percebe: "O amor é simples, para citar uma frase/ Você sempre soube, eu estou aprendendo agora/ Eu sei onde te achar/ No quarto de alguém/ É o preço que se deve pagar/ Você é uma garota crescida de qualquer jeito." Dylan não nos faz sentir pena dele, mas solidariedade, nos faz compartilhar o seu pesar e tentar no solo de gaita, no final, exorcizar alguns dos fantasmas que nos assola.

Por sua vez, "Idiot Wind" é como Songs For An American Movie Part 2, do Everclear: agora que tudo terminou, você vai ouvir. Novamente Dylan começa com uma parábola, mas em segunda pessoa, falando diretamente com a mulher que o rejeitou: "Vento idiota, soprando cada vez que você move os dentes/ Você é idiota, querida/ É um milagre que ainda saiba respirar." Nesse momento Dylan fica na tentação de se colocar como a vítima irredutível da história "Eu não consigo mais sentir você, eu não consigo mais nem tocar nos livros que você leu/ Toda vez que eu rastejo pela sua porta eu queria ser outra pessoa." Não estamos lidando com "silly love songs", nenhuma música desse disco fala de amores utópicos, e até mesmo uma canção raivosa termina com uma consciência tremenda: "Somos idiotas, querida/ É maravilhoso como ainda podemos nos alimentar." Não é o outro o único culpado. Somos todos. Uma outra interpretação pra essa canção, bem apropriada, pode ser achada aqui, em português e num site politicamente conservador...

"You´re Gonna Make Me Lonesome When You Go" retorna às raizes folk de Dylan, com violões, baixo e uma gaita no final apenas. O bardo canta o quão bom é o seu amor, e teme, avisa: "Você vai me fazer solitário quando for embora." cita poesia novamente (já havia falado de "um poeta italiano do século 13" em "Tangled Up In Blue"), evocando o caso turbulento do Paul Verlaine e Arthur Rimbaud: "Situações acabaram tristemente/ Relacionamentos sempre foram ruins/ O meu tem sido como o de Verlaine e Rimbaud." O Tom de voz é de alegria contida, conformado com os destinos determinados pelos deuses, Dylan se conforma com o seu fim.

Evocando os blues pré-eletricidade (apesar da guitarra), "Meet Me In The Morning" aparece com seus slides e sua estrutura simples. Dylan encarna o negro do Mississipi e escreve a letra como um Robert Johnson letrado: "Dizem que a hora mais negra/ É logo antes da alvorada/ Mas você não ouviria isso de mim/ Todo dia tem sido negro desde que você partiu." Novamente, ele está conformado. É o blues da vida, baby, eu não vou ter o seu amor pra sempre, e assim segue na sua tortuosa estrada, pelas leis que não estão escritas.

Por sua vez a gaitinha do começo de "Lily, Rosemary and The Jack Of Hearts" soa como "venha cá, chegue mais que eu tenho uma história para te contar". Mais tarde Dylan também fez uma canção longa contando outra história, a famosa "Hurricane". "Lily, Rosemary and the Jack Of Hearts" inspirou também "Faroeste Caboclo" de Renato Russo, só que, ao invés de contar toda uma vida e se propor a ser uma denúncia social, a música de Dylan parece mais o roteiro de um filme de bangue-bangue sem nenhum tiroteio. Nos primeiros versos, animado por um órgão esperto e um country acelerado (não chega a ser um hillbilly, creio) que vão até o fim, Dylan apresenta sua cidadezinha e o roubo que estava sendo planejado. Cada personagem que aparece ao longo da narrativa é apresentado em um verso em separado: O misterioso e fodão (Wolverine, saca?) Valete de Copas; Lily, sua paixão; Big Jim, dono da mina de diamante e filha da puta mor da vila e por fim sua esposa Rosemary, que não agüenta mais as traições do marido. Ao mesmo tempo o juiz, que veio para a cidade para um enforcamento está enchendo a cara no saloon onde a história se passa. De repente a bagunça se instaura: Big Jim tenta matar o Valete mas é assassinado por Rosemary enquanto os companheiros do Valete fogem com todo o dinheiro do banco. No fim, Rosemary é enforcada, Lily termina sozinha e o Jack Of Hearts já está em algum canto no velho Oeste. Nada demais, apenas uma história de amor e perda para relaxar um disco tão pesado.

Até porque a canção seguinte é a desesperadamente sóbria "If You See Her, Say Hello". O que importa é a voz de Dylan, clara e potente como poucas vezes foi ouvida. Ele se esforça em cada verso, procura quebrar a barreira e ser o mais sincero e humilde o quanto puder. Como o dono de um ponto de para no meio da estrada ele fala com um amigo em viagem, ou um desconhecido, não importa, ele precisa falar com alguém: "Se você a ver, diga olá, ela deve estar em Tangier/ Ela se foi daqui na primavera passada, está por lá, eu soube/ Diga por mim que estou bem, apesar das coisas estarem meio paradas/ Ela deve estar pensando que eu a esqueci, não diga que não é verdade." Dylan se vê carregando seu amor de altruísmo, "O que fizer ela feliz, eu não vou me meter", mas não consegue agüentar a saudade. Algo me diz que ele chorou pacas, como só os machões fazem, sozinhos, enquanto compunha cada verso, todos simples, desse apelo: por favor, que sabe tomar só um café, mas não me deixe tão miserável. O estrago da separação aos poucos é sentido: "Eu vejo muita gente enquanto eu viajo/ E eu ouço o nome dela aqui e ali, enquanto vou de cidade em cidade/ Mas eu nunca fui disso, aprendi a desligar/ Mas acho que sou muito sensível, ou estou ficando macio." Respeito e um coração quebrado, isso é tudo que sobrou para Dylan oferecer para a sua amada.

"Shelter From The Storm" nasce para reconhecer todo o valor da ex-esposa: "Eu estava queimado de exaustão, enterrado até o pescoço/ Envenenado nas moitas, desviado do meu caminho/ Caçado como um crocodilo e perdido no milharal." O momento que ela aparece na vida do poeta está tatuado na memória dele:"De repente eu me virei e ela estava lá/ Com braceletes prateados nos pulsos e flores na cabeça/ Ela veio graciosamente e tirou minha coroa de espinhos/ 'Entre', ela disse/ 'eu vou te abrigar da tempestade.'". A coroa de espinhos não é a única referência cristã: "Numa pequena colina de uma vila eles jogaram pelas minhas roupas/ Eu negociei por salvação e eles me deram uma dose letal/ Eu ofereci a minha inocência e recebi escárnio." Dylan é o Cristo de si mesmo, mas a salvação está nas mãos dela. Agora, depois de tudo errado, desculpa-se e reitera a sua promessa de fazer sempre o melhor por ela. "Shelter From The Storm" é um obrigado e uma obrigação, a de manter boas lembranças. O folk, todo levado no violão, termina com uma gaita característica, como a maior parte das canções do disco.

Fechando o disco está a singela "Buckets Of Rain", também só no violão, mais floreado que na faixa anterior, é o epílogo perfeito para a saga de Blood On The Tracks, que deve ter consumido muito de Dylan. "Baldes de chuva/ Baldes de lágrimas/ Tenho todos esse baldes vindos das minhas orelhas/ Baldes de raios da lua nas minhas mãos/ Você tem todo o amor, doce querida/ Que eu posso agüentar." Dylan resume tudo e despede-se, com a consciência tranqüila e alguns demônios exorcizados: "A vida é triste/ A vida é uma mentira/ Tudo que você pode fazer/ É fazer o que você tem que fazer/ Faça o que deve, e faça bem/ Eu farei isso por você, doce querida/ Pode me dizer?"

Blood On The Tracks termina assim, no silêncio e na dúvida. É o maior disco de pé-na-bunda que eu conheço, e sua audição não deve ser recomendada para aqueles que não vão tão bem em seus relacionamentos. Ou não, vai que nego se toca do que aconteceu com o Dylan e resolve se aprumar. Não sei, só sei que todo o conjunto é de uma sensibilidade ímpar, a obra-prima de Bob Dylan, mesmo que seja de uma influência menor nos seus discípulos. É assim que deveria ser, Blood On The Tracks é uma experiência solitária como atravessar o rio Estige: você pode estar acompanhado de Caronte e outras almas da mesma sorte que você, mas nunca você vai está tão só.