4.7.06

Listen To The Girl/ As She Takes On Half The World

Ainda republicando o velho blog, só para manter esse aqui em dia (e para arquivar toda a minha "vasta" produção num endereço só). Agora, fugindo um pouco da música, um futuro clássico cult: Encontros e Desencontros.

Charlotte Sometimes

"I’m stuck. Does it get easier?"

Todas as pessoas com uma mínima chance de importar alguma coisa já se sentiram como a personagem de Scarlett Johansson em Encontros e Desencontros. Aquele mesmo amargor na garganta provocado por uma sensação mais profunda e confusa que apenas de um estranho em terra estranha (como diriam os Bunnymen, "People are strange, when you’re a strange"[eu sei que é do Doors, mas a versão do Bunnymen é melhor]). Ali, na tela, vemos o pico dessa experiência, catalizada por todas as coisas que só Tóquio oferece para os Ocidentais: jet lag, nada de alfabeto romano, conforto cultural mínimo (aliás, creio que Mafesoli já falou sobre "não-lugares", zonas de espaço-tempo que apresentam uma geografia física e cultural padronizada, como os shopping centers e os aeroportos [inclusive tem uma história sobre isso no "Clube da Luta"]). Mais uma das fábulas modernas, essa complexa mitologia da cultura pop, o filme da filha do hôme não trata de solidão ou do encontro das semelhanças entre os diferentes.

O deslocamento não reside nos problemas de tradução, no custo da ligação telefônica internacional, em não se encaixar no papel que a sociedade espera de você. O problema não é fumar: é perceber que o seu maior plano em longo prazo é largar o vício. Mais que a inutilidade do comercial de uísque, é a naturalidade em aceitá-lo. Não é o mal de uma geração que enfrentou o fim-do-século com hedonismo policiado. Não é a Cameron Diaz. Não é o CD de auto-ajuda.

Charlotte é um microcosmo de auto-descoberta nessa briga entre o cada vez mais importante mapa-realidade individual e mutável contra um status quo que pouco tem a ver com regras de etiqueta. Acima da cidade, olhando o nada e escutando apenas aquele som agudo fabricado pelo nosso próprio cérebro. O Japão é só um dos melhores veículos para perceber como conseguimos nos perder em nós mesmos: sem todas as facilidades de entretenimento e sociabilidade, afastada da automação do cotidiano e funcionando com o horário trocado em relação ao resto dos seres humanos, Charlotte sente o vórtice intensificado. Não exatamente um "o que você quer fazer da vida?", mas um "o que você pode fazer da sua vida", com uma insistente sensação de que se pode tudo, mas não se deve, ou quer, nada.

No auge dos seus 19 anos, Scarlett era (e ainda parece ser) a Charlotte universal. Bonita, mas com sutilezas (ou será verossimilhanças?) proibidas em Hollywood, como a barriguinha de cerveja. Sorriso suave, voz profunda e macia, uma aura de naturalidade rara nesse mar de tubarões da publicidade (que é pra isso que se presta, cada vez mais, Róliuúde). Mais segura que a Winnona Ryder e menos agressiva que a Angelina Jolie, Scarlett emana familiaridade. Assim conta aos outros sobre si mesmos. Exatamente aqueles que não entendem nada de rumo, mesmo que com as mãos repousando no timão, aqueles que repassam infinitamente na cabeça planos infinitamente fadados ao fracasso, aqueles solitários de multidão, aqueles que tem fé em tudo menos em si mesmos. Mesmo o mais alto arauto da iluminação teve a sorte de passar por esse estágio (tudo são estágios de uma permanência total). No fim, entre o som e o silêncio, a trilha sonora (explicando todo o resto) pende confusa entre o cinismo e a esperança. Porque mesmo as lamentações quixotescas de Nick Lowe em "What’s So Funny About Peace Love & Understanding" acabam soterradas pela introdução de bateria chupada das Ronettes, a parede de guitarras e a voz cheia de eco dizendo: "Eating up the scum is the hardest thing for me to do."

Um comentário:

Anônimo disse...

nossa...
que texto!..
parecia que eu estava lendo meu auto-retrato.
nem mesmo eu nunca consegui me descrever tão bem!
Acho que Tokio ali funciona, em alguns momentos, como qualquer cidade grande. Poderia ser Nova York ou São Paulo.
assim como vc disse, as pessoas são estranhas, quando vc é estranho.
O filme trata de solidão sim. e uma solidão tão profunda que permite tal encontro com os mais internos fantasmas (ou fadas), especialmente da Charlotte.
Não encontro de semelhanças, encontro de seres que se desencontravam com tudo em suas vidas externas.
O Japão, em raras cenas, é usado como um pano de fundo belo e melancólico, de monjes e gueixas para dar uma estética refinada ao filme, ao meu ver.
e há estagnação pior do que a de vc saber que pode fazer, mas não saber se/o que quer fazer?

boa leitura! parece até que vc amou o filme que nem eu.. para mim, ele é nada menos que genial.

Obrigada pela leitura! e pelo prazer de ler-te.