31.3.06

It´s a time I remember, oh, so well

O clichê diz que “a história é escrita pelos vencedores”. E os lugares comuns por vezes estão esmagadoramente certos, especialmente este, que versa exatamente sobre a fragilidade da suposta acurácia do registro histórico. Dogmas são impostos e derrubados, personalidades são deletadas da memória coletiva (como bem sabia fazer Stálin), tiranos podem ser heróis e os derrotados são automaticamente alçados à categoria de malfeitores. Tais distorções existem pelo simples fato de que a história em si é administrada por homens, e por mais que exista um esforço, de tempos em tempos, em manter uma narrativa “fiel” à nossa realidade consensual, a história só existe enquanto criação, evento encadeado de uma maneira de certa forma lógica e registrado num processo linear, que, porém, não está imune às distorções que possam ser cometidas por aqueles que a registram, guardam, copiam e administram. Tais “distorções” não ocorrem apenas num campo “pessoal”, tratando deste ou daquele historiador, mas sim dentro de um processo de geração de uma realidade consensual, que, ao mesmo tempo em que se baseia na história como regra, a transmuta, não só em direção ao futuro, mas também em direção ao passado.

A Guerra Civil norte-americana sempre foi pintada em termos maniqueístas: os heróis libertadores do norte contra os nojentos escravocratas do sul. Não que isso seja especialmente uma mentira, neste caso, uma das principais causa da cisão entre as regiões dos EUA foi exatamente a divergência em relação à repugnante prática da escravidão. Ou seja: o Norte estava com toda a razão. A guerra foi de certa forma necessária, pois evitou a divisão do país, e conseqüentemente, a criação de um Estado essencialmente escravocrata. Porém, a guerra gerou um abismo profundo dentro dos EUA, traçando eternamente uma linha que já era acentuada entre os então confederados e os unionistas. Um país que, mesmo potência econômica, nunca superaria as suas diferenças internas, cabendo aos sulistas a fama (muitas vezes justa) de conservadores racistas, e ao norte a posição de líder modernizador da nação. Depois do final da Guerra de Secessão, os EUA ficaram com uma economia fragilizada – mas com uma sensível diferença: os estados do norte, mesmo que com um maior número de baixas, tinham do seu lado uma potente indústria, fomentada pela guerra, que pôde superar o trauma econômico, enquanto o sul, antes pobre, e agora miserável, ficava à mercê de qualquer crise na economia do país (como, por exemplo, o pânico de 1873). A reconstrução do sul, além da abolição (mal preparada, que deu abertura a um sem-número de leis racistas que durariam até os anos 60), foi um processo amargo e doloroso, especialmente àqueles que não estavam entre os senhores de escravos, mas que ainda assim pagaram o preço da guerra.

The Band ganhou este tão incisivo, e ao mesmo tempo, simples nome, quando eram a banda de apoio de Bob Dylan. Depois de tocar com o pioneiro do rock canadense Ronnie Hawkins por algum tempo, haviam se transformado nos The Hawks. Após a conturbada turnê do bardo em 66, acabaram se juntando numa casa em Woodstock (a Big Pink) para ensaios e experimentações – que mais tarde se tornariam as míticas Basement Tapes, e também geraram o álbum Music From The Big Pink. Nessa época, os vizinhos passaram a se referir àqueles cinco barbudos estranhos apenas como “a banda”, epíteto que foi adotado aos poucos. Após Big Pink, a Band gravou um segundo álbum, lançado em 69, intitulado simplesmente The Band. Ali, se aprofundavam ainda mais nas raízes da música norte-americana (detalhe: só um membro do grupo era nativo dos EUA – o baterista Levon Helm, nascido no Arkansas), criando um folk-country-rock que é a base tanto dos Eagles quanto do Wilco, num gênero que mais tarde seria chamado (especialmente nos EUA) de “Americana”. The Band, o álbum, é parte crucial da “República Invisível” divisada por Greil Marcus – um resgate e uma reconstrução (não só na acepção de reabilitar, mas na de criação de novos sentidos) da história norte-americana através da canção. A música recebia um tratamento que soava arcaico e, por conseqüência, atemporal – um re-fabulação de uma América mítica, que começava na capa e ia até o âmago de cada faixa. As músicas faziam oposição à psicodelia reinante, tanto na sonoridade quanto nos inusitados temas: a penúria rural (“King Harvest [Hás Surely Come]”), o envelhecimento (“Rockin´ Chair”) e a Guerra Civil (“The Night They Drove Old Dixie Down”).

Iniciando com um clarinete em tom de marcha fúnebre, “The Night They Drove Old Dixie Down” logo explode em tristeza. Levon Helm, atrás de seu kit de bateria, assume a persona de Virgil Caine, um ex-soldado que servia nas linhas de trem de Downville, num trem de carga que levava suprimentos para Richmond, capital dos Confederados, “até que a cavalaria de Stoneman veio e destruiu os trilhos”. A interrupção da linha de abastecimento aparece como símbolo da derrota dos sulistas na guerra – complementado pela queda de Richmond, em 10 de maio, como citado na canção. “É um tempo que eu bem me lembro”, canta com um carregado sotaque Helm antes de explodir no refrão: “A noite em que eles acabaram com o velho Dixie/ Todos os sinos repicavam”. “Dixie” é como eram/são conhecidos os estados do Sul dos EUA que acabaram se separando da nação – uma alcunha para a Confederação.

Helm canta a música com vigor e, ao mesmo tempo, em desespero. Além de único norte-americano na banda, também era sulista – e Robbie Robertson, compositor principal do grupo, diz ter escrito esta canção inspirado no baterista (que, por sua vez, afirma ser parceiro na composição). Existem partes específicas em que Helm se enche de desespero: quando fala da fome em 65, do irmão morto, como se a história de Caine fosse a sua. E ali, no pesar daquela canção, a história não era só dele, mas de todos os sulistas. O sotaque carregado é embebido em blues – não o ritmo, mas o sentimento – e um orgulho difuso, a tristeza empedernida daqueles que insistem em sobreviver. Esse é o tom que embala o refrão, uma nação derrotada que ainda tem orgulho de si mesma: “Todas as pessoas cantavam/ Na na na na na...”, como numa canção de ninar.

Descrente, Caine faz pouco caso da esposa que o chama para ver o general Robert E. Lee, comandante confederado. Prefere tratar do seu próprio amargor “Eu não me importo em cortar madeira/ E não ligo se o dinheiro não é bom/ Você pega o que precisa e deixa o resto/ Mas eles não deveriam ter tomado o que há de melhor”. Ele sabe o preço que se paga pela derrota, mas não se conforma com a maior perda de todas, que acaba sempre se sobressaindo em guerras: a contagem dos corpos. A estrofe seguinte é cheia de significado: “Como meu pai antes de mim/ Eu trabalharei a terra/ E como meu irmão acima de mim/ Que tomou o partido rebelde/ Ele tinha apenas dezoito, cheio de orgulho e coragem/ Mas um ianque o deitou em seu túmulo/ Eu juro pela lama sob os meus pés/ Você nunca destrói um Caine – nem na derrota”. A soma do lúgubre e vigoroso instrumental com o inspirado vocal causa um efeito de simpatia, de compaixão (no sentido mais literal possível: sofrer junto, fazer do sofrimento do outro o meu). E a canção se torna um incrível libelo anti-guerra, invertendo o maniqueísmo. O sul não é um inimigo maquiavélico porque nunca houve um inimigo maquiavélico, apenas seres humanos. Colocando-nos no lado derrotado, a Band dá a dimensão funesta da guerra, onde nada se ganha, apenas uma pilha de corpos, e reduz a estatística para o humano, onde a tragédia de se estar vivo reverbera. Não existe derrota, porque a derrota é de todos – os corpos queimados em napalm no Vietnã são os mesmos desintegrados pela bomba atômica no Japão. E os mesmos apodrecendo no inverno da Virgínia.

PS: Gostou do texto? Então corre para esse artigo, muito mais completo e significativo.

Um comentário:

Guilherme Dal Sasso disse...

simplesmente fantástico o artigo! do caralho!